Início Cultura Espaço ArteLetra A POÉTICA ‘DE LÍNGUA SOLTA’ DE PEDRO AMÉRICO DE FARIAS

A POÉTICA ‘DE LÍNGUA SOLTA’ DE PEDRO AMÉRICO DE FARIAS

Pedro Américo de Farias *

01.
A pichação 

Um caminhante observa

onde era rio de água limpa 
hoje é esgoto a céu aberto

leu num outdoor
Declare seu amor à cidade!

grafitou embaixo 
Sim! Eu amo esta merda!

02.
Poética da incerteza


Poesia espaço-tempo 
da fala 

sopro de vida 
que move o corpo 
compõe o ser 
cava a liberdade

Lugar da palavra 
o do próprio ser vivente 
buliçoso 
corpo em ebulição que se 
renova 
ovo placenta calor do 
ninho 
o criador se faz discurso e 
gesto 
na palavra que voa 

ou na letra do texto sobre o 
papel passado a limpo 

O texto qualquer que seja 
é portador de múltipla face
diz de si ou não diz
movendo-se ante olhos atentos

objeto frio calado cola na retina 
mexe com o juízo do leitor a quem se revela
na verdade quem se revela é o leitor 

já não será objeto que nada expõe
mas o que carrega em si possibilidades

se redundante : objeto qualquer
pedaço de ripa desprendido 
do alpendre numa velha casa

ficará ali até que alguém 
pode ser uma criança
melhor que seja 
o recolha e faça dele coisa nova 
singular 
a que possa acrescentar alma 
assinatura

03.
Poética da língua solta

Nada de obra-prima 
que se compraz em posar nua 
top model de platina em bandeja
de ouro 
mercê da solidão 

tal qual livro se faz 
ombro-a-ombro 
nas bienais da vida 

depois nunca mais 

cânon oriental
ocidental 
cânon europeu 
americano 
cânon ibérico 
macabeu 

entra 
tudo 
pelo 
cano 

poesia é a língua solta

04. 
Poética da hibrida natureza 

Entra-se na poesia 
em simbiose desviante 

a palavra agrega extravagâncias 
primeiro a inquietação 
não raras vezes termina na cesta 
do lixo 

outras vezes forra cama e mesa 
da criação  

05.
Verde verme

verde
que te
quero
verde

que me
quero
ver-me

que te
quero
ver-te

que me
quero
verde

que te
quero
verme
verde

06.
De moda e de balé 

A moda muda e muda tudo 
e volta sempre a mudar 
enquanto isso 
emudecida 
a modelo esquelética 
quando mudará?

haverá figurinista 
que ao invés de obrigar 
a marcharem 
magras pernas belos rostos 

desenhe coreografias 
num corpo de baile 

a mostrar roupas 
e a alegria de vesti-las 
bailando?

07.
Chauvin no Brasil 

O brasileiro é muito
muito criativo mesmo
mas tão criativo que é

capaz até de criar a 
‘originalíssima’ 
ideia de que a criatividade é 
exclusiva da inteligência brasileira 

08.
Um marinheiro e o Recife

Indiferente à verdade e à fantasia

ao traçado do primeiro
e do último arquiteto

à lógica que não seja
a do olho e do tato

ao amor louco dos bêbados ansiosos
e à autoflagelação dos ressacados

ao deslumbramento do turista aprendiz de hoje
e à lamentosa tortura dos passadistas

à complacência dos podres poderes
e à penitência dos pobres beatos

um marinheiro pinta para si mesmo
a rua que lhe convém

diminui distâncias e aproxima o porto
desmancha a topografia

recompõe a cidade
sem perder de vista
o mar e a linha do horizonte

09.
Liquid(ific)ação  

Há horas em que o desânimo 
entra na minha casa 
sem bater à porta
instala-se de tal maneira 
posudo e arrogante

que chego a pensar 
com meus velhos botões 
que a humanidade veio 
ao mundo para reduzi-lo  
a um monte de tralhas

concluído o trabalho
o produto final 
será exposto à venda 
no Ferro Velho de Deus

10.
Blitzkrieg

O comando chegou à favela
atirando a torto e a direito

abateu a tiros de escopeta
em legítima defesa
uma criança nua
que acordava assustada
chorando e coçando os olhos

*** Você leu aqui Dez poemas de Pedro Américo Farias, do livro Coisas: poemas etc.

Biografia

Pedro Américo de Farias
Nascido em Pernambuco, mora em São João del Rei – MG.
Licenciado em Letras, escreve e diz poesia, ensaia prosa crítica e ficcional. 
Exerceu atividades de gestão na Fundação de Cultura Cidade do Recife, onde desenvolveu inúmeros projetos, entre os quais o do festival A Letra e a Voz.
Integrou o Conselho Editorial da Cia. Editora de Pernambuco – Cepe (2011 – 2015). 
Publicou, entre outros: Coisas: poemas etc (Linguaraz Editor, 2015); Ficção em Pernambuco – breve história (c/ Cristhiano Aguiar, Interpoética, 2013); Viagem de Joseph Língua (romance. Ateliê, 2009); Par ímpar (c/ Wilson Araújo de Sousa, ed. do autor, 2009); Linguaraz (audiopoemas, ed. do autor, 2009).

Contato: linguadepoeta@gmail.com

Espaço ArteLetra

O Espaço ArteLetra é um ambiente de divulgação e circulação de produções artísticas e literárias, em particular de produções contemporâneas nacionais. Este Espaço de exposições tem como um dos principais objetivos apresentar projetos diversificados, incentivando a participação de novos artistas e contemplando diferentes suportes e linguagens, que tanto dizem da cena atual.

Uma das intenções do Espaço ArteLetra é aproximar o público de um amplo conjunto de obras, estimulando o acesso e consumo de arte. Ao trazer essas produções para o espaço privilegiado do Notícias Gerais, queremos suscitar novos diálogos e questões latentes da nossa sociedade, contribuindo para a formação de público e troca de experiências.

O palíndromo ArteLetra, formado pelo espelhamento quase perfeito das palavras “arte” e “letra”, apenas ressalta a característica híbrida das produções contemporâneas, e a estreita relação entre as artes, palavras e mídias. Esse laço é aqui uma representação das nossas relações, da maneira como nos correspondemos, e do reconhecimento de que as manifestações culturais nos tornam mais próximos, ainda que cada qual com seu olhar.

O Espaço ArteLetra mantém um calendário regular, sendo a cada semana um/a novo/a artista convidado/a.

Fiquem antenadas/es/os!!!

Deborah Castro, curadora.
arteletra.ng@gmail.com

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