Início Opinião Artigos SÃO JOÃO DEL-REI, A CIDADE DA MEMÓRIA COMPLEXA E DA IDENTIDADE PLURAL

SÃO JOÃO DEL-REI, A CIDADE DA MEMÓRIA COMPLEXA E DA IDENTIDADE PLURAL

A casa de estilo eclético (à esquerda) compõem o conjunto arquitetônico do Largo do São Francisco, ao lado de outra casa e da Igreja, coloniais. Foto: Ronaldo Cardoso (Vu)

Tulio de Oliveira Tortoriello *

Polêmicas e discussões sobre a preservação do patrimônio histórico e cultural de São João del-Rei acontecem há muito tempo. Começaram antes mesmo de grande parte dos edifícios, igrejas e monumentos da cidade serem tombados, em 1938, pelo então SPHAN, hoje IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Para entender um pouco melhor as controvérsias e divergências em torno do assunto, o que inevitavelmente costuma levar a comparações entre nossa cidade e a vizinha Tiradentes, menor e considerada “mais preservada”, é preciso entender a dinâmica da história e do desenvolvimento de São João del-Rei ao longo de seus mais de 300 anos. 

Diferentemente de outras cidades mineiras do ciclo do ouro, fundadas na mesma época e que tiveram seu apogeu do século XVIII até meados do século XIX, São João del-Rei continuou a se desenvolver durante os séculos XIX e XX, encontrando no comércio e na agropecuária e, posteriormente em algumas indústrias têxteis, importantes fontes de renda. Este desenvolvimento praticamente perene da cidade, que chegou ao século XXI como um polo potencialmente turístico e cultural, e as várias mudanças por que tem passado durante sua existência, fizeram com que ela absorvesse as características de várias épocas, em seu patrimônio histórico e cultural, na sua cultura e na vida social, vislumbrando-se, atualmente, uma identidade cultural híbrida para a cidade.

Os séculos XVIII e XIX se relacionam com a origem da cidade, a descoberta do ouro em suas encostas, a construção dos templos barrocos e de edifícios coloniais. São João del-Rei era uma importante vila no cenário mineiro, desde sua fundação, porque possuía uma localização estratégica, relativamente afastada da capital, a então Vila Rica. Isto a tornou um polo regional desde o início do século XVIII, vislumbrando-se uma vocação para assimilar e incorporar as mudanças que o tempo impõe às sociedades e aos povos. 

Ora, a riqueza das suas igrejas barrocas, tendo a Matriz do Pilar como uma das mais ricas em ouro no Brasil e a solidez e grandiosidade de suas duas pontes de pedra, a da Cadeia e a do Rosário, não revelam apenas a “herança fechada” dos tempos coloniais e a pujança do ouro que circulava na vila, mas também e, principalmente, a importância de uma cidade vocacionada a ser, de modo permanente, uma sede do progresso da Comarca do Rio das Mortes, hoje região das Vertentes. Eram as origens apontando o futuro. 

Ânsia pelo progresso

O século XX traz a ânsia pelo progresso, no bojo das inovações tecnológicas surgidas a partir do final do século anterior. Esse “apetite” progressista fez a cidade incorporar, por exemplo, características arquitetônicas diversas, como o estilo Eclético, que era a tendência nas construções do final do século XIX e início do XX. É um estilo mais rebuscado, com uso de técnicas e materiais mais apurados, com variedade de detalhes nas construções. 

São João del-Rei não só incorporou este estilo em sua arquitetura, como também se tornou a única das cidades “históricas” mineiras, consideradas aqui as cidades do ciclo do ouro e do diamante, a ter em sua paisagem a forte presença do Eclético convivendo com o estilo colonial anterior. Este estilo, que hoje é digno de preservação e considerado parte tradicional e uma identidade da cidade, por uma parcela da população e pelos órgãos institucionais de proteção do patrimônio, era, na época, a “face” do progresso, juntamente com as inovações tecnológicas surgidas naquele tempo.  

Assim, não devemos enxergar uma “fidelidade da tradição” nesta manifestação arquitetônica e cultural da cidade, pois ela só adquiriu importância ao longo dos anos, quando outras manifestações culturais foram surgindo e quando se percebeu que o Eclético revelava, de maneira consistente, a marca de uma época da cidade, naquela virada do século XIX para o XX. Era a novidade revelando a evolução.

A fachada da Matriz, em estilo neoclássico, contrastando com as casas em estilo eclético. Foto: Daniele Campos

Ao som do apito do trem

Sebastião de Oliveira Cintra elenca, em suas Efemérides de São João del-Rei, vários acontecimentos que impulsionaram o desenvolvimento da cidade a partir do final do século XIX, como a inauguração da EFOM, Estrada de Ferro Oeste de Minas, em 1881, que foi um facilitador da comunicação da cidade com a província e o país, a chegada da luz elétrica e a abertura de vários jornais e agências bancárias, até a segunda década do século XX. 

Não somente a economia, com destaque para o comércio e a indústria, mas também a vida cultural da cidade passava por um grande momento, reflexo de um período de efervescência teatral no Rio de Janeiro, iniciado em fins do século XIX. Os jornais da década de trinta e quarenta estampavam, quase que diariamente, grandes anúncios de filmes e peças, em cartaz no imponente prédio do teatro municipal da cidade, inaugurado em 1893 e reformado em 1924. 

Antônio Guerra, importante personalidade do teatro são-joanense do século XX, fundou, em 1905, um grupo de teatro, primeiramente com o nome de Grupo Dramático Infantil Quinze de Novembro, passando a chamar-se Clube Teatral Artur Azevedo, em 1928. Esse grupo chegou até o ano de 1985, sendo responsável pela maior parte das operetas, comédias, revistas e outros gêneros teatrais encenados na cidade no período. Por aqui passavam trupes de outras cidades, como as do Rio de Janeiro, que disputavam público com os grupos locais. 

A música também tinha grande importância nas manifestações culturais são-joanenses. Além de participarem dos ritos religiosos, orquestras centenárias da cidade estavam também presentes nas peças teatrais. Em 29 de março de 1938, o Diário do Comércio anunciava, com destaque, a Semana de Música São-joanense. Era o progresso chegando a São João del-Rei naquele início de século. Nesse mesmo ano, em plena efervescência do movimento modernista no Brasil e sua peculiar relação com a preservação do patrimônio histórico e cultural do país, há o tombamento do conjunto arquitetônico e urbanístico de São João del-Rei, pelo recém criado órgão federal de proteção do patrimônio, o SPHAN, atual IPHAN. 

Inserida na contemporaneidade

O século XXI mostra uma cidade inserida na contemporaneidade, dotada de um patrimônio histórico e cultural capaz de torná-la um polo turístico e cultural, mas também com uma população e uma economia em comunicação permanente com o mundo globalizado. Néstor Canclini, antropólogo argentino que estuda a cultura latino-americana, afirma, em seu livro Culturas Híbridas, que os tradicionalistas pensaram em sociedades onde as culturas nacionais e populares estariam preservadas da industrialização e da influência estrangeira. Ao contrário, os modernizadores imaginaram que a modernização acabaria com as formas de produção, as crenças e os bens tradicionais. Mas, segundo o autor, “hoje existe uma visão mais complexa sobre as relações entre tradição e modernidade”

Esta constatação de Canclini revela o quanto, na atualidade, as cidades podem ser, ao mesmo tempo, tradicionais e modernas, ter faces diferentes, variadas e até mesmo antagônicas, de acordo com quem a observa ou vive nela. Reportando-nos ao caso de São João del-Rei, tal fenômeno fica ainda mais evidente, pois aqui, um cidadão que a habita pode contemplar uma igreja do século XVIII sentado num banco de praça, ouvindo música eletrônica num telefone celular, ou pode passar com seu carro do ano numa estreita ponte de pedra construída em 1798. Mas é possível também que um são-joanense viva numa casa de estilo Eclético, com varanda lateral e jardins, ou numa casa moderna num condomínio fechado construído há poucos anos na cidade. Há também os que vivem na periferia, em construções precárias e têm pouco ou nenhum acesso aos monumentos históricos e espaços de convívio público do centro da cidade.

Por tudo que foi exposto, acreditamos na necessidade de refletir sobre um maior entendimento, um maior trânsito e intercâmbio entre as diferentes práticas sociais, políticas, econômicas e culturais das pessoas que vivem numa cidade com uma memória tão complexa e uma identidade tão plural como São João del-Rei. O contexto da cidade deve ser trabalhado, levando-se em conta os diferentes interesses e aspirações de uma sociedade que muitas vezes não se dá conta ou não aceita viver numa cidade que tem uma identidade ao mesmo tempo tradicional, moderna e contemporânea.

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Letras (linha de pesquisa Literatura e Memória Cultural) pela Universidade Federal de São João del-Rei, com dissertação defendida sobre “Usos sociais do patrimônio histórico e cultural de São João del-Rei”, ex-membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de São João del-Rei. de 2003 a 2009.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui