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CRÍTICA: SEMATARY CHEGA AO EXPLOSIVO CLÍMAX

Imagem: reprodução

João Murad *

“Laughing through the pain” é sem dúvidas uma das melhores frases para se descrever o mais novo projeto do rapper, produtor e criatura noturna SEMATARY. O trecho é parte de uma série de DJ drops posicionadas ao longo do álbum, alimentando a sopa primordial de sujeira, perversão, shitposting, texturas e referências que compõem a obra.

Em 16 faixas, presenciamos as camadas de um cínico senso de humor, destiladas durante 53min e 10 seg. Intervalo no qual as músicas se desenrolam de forma extremamente fluida e catártica, sem espaço para cansaço ou indiferença.

Cativante do primeiro ao último segundo, SEMATARY mostra grande capacidade na estruturação de cada elemento, todos sendo capazes de entalhar suas marcas em nossa pele. O domínio na disposição das texturas aqui trabalhadas contribui para que uma mixtape, com esse nível de disrupção sensorial, seja traduzida sem limbos. Contexto no qual as inúmeras referências expressam seus azedos sabores de maneira holística. Navegando pelo Black Metal Noruguês noventista, a cena underground do Trap em Chicago no início dos anos 2010, o Hip-Hop e Horrorcore do sul dos EUA, e pelas mixtapes de Hardstyle das raves norte-americanas, Rainbow Bridge 3 sintetiza uma paleta sonora que privilegia os ouvintes caçadores de detalhes, sem se entregar aos clichês e saturações dos gêneros e projetos nos quais se alicerça. E vale destacar que esses são apenas ALGUNS dos vários nichos que se aglomeram feito vermes em uma ferida necrosada, nesse mix.

Abrindo a tracklist, GOD´S LIGHT BURNS UPON MY FLESH já chega feito uma bomba de êxtase e transgressão divina, com uma explosiva síntese de guitarras afogadas em distorção, berrando em agonia com o trêmulo, derretendo sob uma colagem de noise digna de Merzbow. Em cima desse amálgama, SEMATARY introduz alguns dos samples e motifs que se repetem durante toda sessão: “It’ s the Haunted Mound! Takin’ you on another hellride!”, proclama o host DJ Sorrow, por cima de buzinas distorcidas e um coro litúrgico.

A inclusão desses trechos com os DJ tags reforçam parte da estética white trash do projeto, que aqui, apesar do todo precedente, agrega mais um elemento positivo, divertido e distorcido à mitologia dessa sátira. E sim, sátira! Diante de todas as referências presentes aqui, fica claro o nível de consciência de SEMATARY, que pega emprestado esses vários elementos, colocando-os em cena de forma em que cada um sirva de espelho aos nichos e clichês, dos quais se originam.

Assim, o produtor ressignifica muito eficientemente os aspectos conceituais e sonoros de seu arsenal artístico. A faixa continua, se sustentando sobre esse tsunami musical de proporções apocalípticas. Logo, uma batida de Drill chamusca sob o sádico liricismo de SEMATARY, que ilustra com extrema grafia um cenário digno de um filme splatter vhs oitentista. Uma cerimônia satânica capturada em fita, resultando em um aterrorizante snuff, que ninguém gostaria de encontrar no porão de sua casa recém comprada. O segundo corte, MURDER RIDE, é uma das minhas favoritas; capaz de transformar o que soa como a mais pura psicose de um irreformável serial killer em um hit chiclete.

Divertida até os ossos, a música ilustra perfeitamente a harmonia entre melodias góticas e dançantes, dispostas em toda a mixtape, com a profunda dissonância dos caos lo-fi de sua produção. Também observamos uma extrema compressão na mixagem, aspecto da estruturação sonora que bizarramente dá mais vida a cada parte da composição, ao invés de achatar as texturas. CHAINSAW PARTY segue na dobradinha de queridinhas pessoais, tendo meu segundo refrão preferido na obra. Extremamente vulgar e soturna, a atmosfera tecida neste corte reafirma muito bem o que separa SEMATARY, ao menos nesse álbum, de seus contemporâneos. Além de seu aguçado senso conceitual, o artista envelopa aspectos obscuros e potencialmente problemáticos com muito carisma e humor, subvertendo a auto indulgência observada em atos como $uicideBoy$, Ghostemane e Bones.

Nosso passeio pela tracklist tem apenas mais algumas paradas, pois toda experiência, apesar de seu nível de carisma e acessibilidade, (ao menos em proporção ao tipo de influência, estética e nicho no qual ela orbita). Seriam necessários três Necronomicons equivalentes em páginas, para contemplar intimamente todos os diabos presentes nos detalhes daqui. De toda forma, não poderia deixar de mencionar SKIN MASK 2, continuação da faixa presente em Rainbow Bridge 2. Meu verso favorito de todo álbum nos coloca na pele, literalmente, de um carniceiro que muito me remete ao personagem Leatherface, não apenas pela brutal referência à criação de vestimentas de couro humano, mas pelo senso de “pureza macabra”, viva na composição

“Put on my skin mask and ride into the night
We ride
Ridin’ through the night
I made a skin mask while the moon shines
Scary night
Scary, scary night”

Em sua simplicidade, o trecho traduz uma melodia e ambiência quase lúdicas, nos aproximando da mente infantilizada de um indivíduo problemático, que encontra paz no singelo prazer sanguinário noturno.

Imagem: reprodução

Nesse tom, todo resto da minutagem se sustenta em uma aura sincera porém obscura, valendo a menção de CREEPIN THRU DA WOODS, TOOTHTAKER e TRUEY JEANS. Mesmo com extrema distorção, compressão e violência, existe muita dinâmica em toda mixtape. Como já fiz questão de ilustrar em outros momentos dessa crítica, presenciamos muita melodia e momentos nos quais nossos sentidos são capazes de se firmar diante do caos, TOOTHTAKER sendo o melhor exemplo disso.

Apesar da extensa review, sinto uma distância latente entre minha capacidade descritiva e a experiência. Felizmente, talvez este seja um ótimo sintoma para representar a criatividade, densidade, inspiração e catarse presentes em Rainbow Bridge 3. A cada nova reprodução, o álbum me permite ver uma nova nuance, um novo cenário para a imaginação vagar. Além também da capacidade de figurar com confiança em um panteão de referências, fato que agrega muito ao nos estimular à ótimas descobertas, ou ao reavivamento de contextos antes relegados ao limbo cultural.

Rainbow Bridge 3 é uma inteligente sátira, que congrega simultaneamente a vanguarda musical de nossa geração, com obscuridades esquecidas no tempo, dignas de mais atenção do público. Em toda duração, sua estética é perspicaz ao ressignificar clichês e vulgaridades que nunca inspiraram, ou ao menos, há muito não inspiravam qualquer expectativa. Até então, tem meu voto para melhor álbum do ano.

* É estudante de Comunicação – Jornalismo da UFSJ e produziu este texto sob a orientação do professor Paulo Caetano, durante a disciplina remota de Produção Textual.

Os artigos de opinião e colunas publicados não refletem necessariamente a opinião do portal Notícias Gerais.

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