Início Opinião Crônica CRÔNICA: DOIS PATINHOS NA LAGOA, É O 22!

CRÔNICA: DOIS PATINHOS NA LAGOA, É O 22!

André Frigo
Notícias Gerais

Meu pai nos meses de junho e julho percorria com abnegado as barraquinhas das festas religiosas da cidade. Praticamente não perdia nenhuma. Não que fosse um beato ou um devoto de algum dos santos ou santas homenageadas. Na verdade sua devoção eram as barracas de víspora ou bingo, onde eram disputados vários prêmios. Mas o mais ambicionado era o frango assado que vinha acompanhado de uma garrafa de vinho.

Praticamente todo fim de semana, meu pai chegava em casa ostentando o prêmio que viraria nosso almoço do dia seguinte. Eu, na minha inocência de criança, não entendia a raiva que minha mãe ficava diante da cena dele chegando com o frango na sacola de plástico e abraçado a garrafa de vinho.

Quando cresci e passei a frequentar as barraquinhas é que fui entender o que se passava naquela luta surda entre os dois. Fechar uma linha no bingo e ser o vencedor da rodada não é fácil. Você joga inúmeras rodadas e na maioria das vezes vai para casa de mãos abanando. Então aquele frango e o vinho custavam dez vezes mais do que custariam se fossem simplesmente comprados. Para meu pai era o prazer do jogo, a excitação de viver a expectativa de em uma rodada ser o vencedor. Para minha mãe era uma despesa a mais que não podíamos arcar.

Eu gostava de ir nessas barraquinhas. Gostava do brilho das lâmpadas penduradas, dos cheiros dos salgados e dos churrasquinhos, das cartelas verdes, azuis ou vermelhas do bingo, do punhado de milho que te davam para você marcar a cartela escolhida cientificamente e pagava para ter direito a disputar o frango e o vinho.

Nunca fui um amante dessa disputa como o meu pai, eu era levado mais pela diversão. Cansava depois de cinco ou seis rodadas frustradas e ia comer meu pastel frito na hora. Ou um churrasquinho feito na chapa, passado na farinha e com molho de pimenta.

Nos meses mais frios do ano, São João del-Rei era aquecida pelo movimento frenético das quermesses que ocupavam o Largo do Carmo, a igreja de Santo Antônio, a do Nosso Senhor do Bonfim e a Feira da Previdência que acontecia na rua principal da cidade. Ainda tinha a festa em honra de Nossa Senhora das Mercês no mês de setembro. Na Feira da Previdência a gente ia disputar as fatias de pizza da barraca do Lyons. Uma massa saborosa, macia, com a quantidade exata de queijo mussarela derretido e molho de tomate que provocava uma fila em frente a barraca. Os pedaços quadrados eram servidos em guardanapos, que recolhiam o óleo que escapava do queijo. A feira acabou e a pizza desapareceu junto.

E nas barraquinhas também tinham o serviço de oferecimento de música. O locutor anunciava lacônico as musicas ofertadas, às vezes com uma declaração, outras anônimas e dá-lhe músicas românticas a noite toda. “Alguém que oferece para alguém como prova de alguma coisa” e vinha Tim Maia, Roberto Carlos, The Fevers, entre outros. Isso misturado ao cheiro de pipoca estourando, de carne assando, de fritura, de maça do amor, de quentão e de canjica.

Ornamentando tudo isso vinham os vendedores de balões, que hoje disputam espaço com os vendedores de bugigangas chinesas que piscam intensamente. Vira e mexe a gente via um balão se perdendo no infinito e uma criança chorando frustrada. Quando criança lembro que os balões que a gente ganhava e sobreviviam até chegar em casa, dormiam no teto do nosso quarto. Antes de dormir ficava olhando admirado aquela bola que tinha o poder de voar. E nunca entendia porque amanheciam murchos no chão do quarto. Restava a ansiedade de saber quando poderíamos ir a outra festa e coincidir com um dia que meus pais tinham dinheiro sobrando para os balões. Afinal eram quatro filhos.

Atualmente andava frequentando mais a festa de N. Sra. do Carmo, no mês de julho. Assim como meu pai não sou devoto: vou pela festa, pelas cores, pelo brilho das luzes espalhadas na fachada da igreja que é ornada com muitas flores, pelos aromas que trazem uma parte da infância de volta.

Raramente entro na disputa pelo vinho com o frango. A disputa é na fila para comprar ficha para os quitutes tradicionais. Não tem a possibilidade da gente oferecer música para alguém como prova de alguma coisa. Mas é possível encontrar velhos amigos enquanto você escuta o locutor do bingo gritar – “dois patinhos na lagoa, é o 22!” E alguém responder de imediato que “deu aqui!”. Na sequência, o locutor emenda: “Não desmarquem porque pode ser barriga”. E logo em seguida vem a sentença: “Confere!”

Nesses momentos olho para o rosto do ganhador para ver se vejo nele o brilho no olhar que meu pai tinha nesses momentos. As recordações surgem de forma inevitável. O almoço de domingo com o frango assado esquentado no forno, do macarrão feito em casa e servido com molho de tomate pedaçudo, tutu de feijão e salada. A família se preparando para disputar os melhores pedaços do frango e o vinho que só podia ser bebido pelos adultos. As vozes ganhando animação, as histórias se revezando com as garfadas, os sorrisos provocados por uma anedota.

Essa nostalgia toda surgiu com a impossibilidade dessas festas e todas as outras festas acontecerem neste ano pandemônico”. De alguma forma, em algum momento, vamos ter de recuperar esses momentos, essas tradições.

Mesmo nesse “mundo novo” vai tem que ter espaço para alguém comer canjica em pé, para alguém escolher sua cartela da sorte, para os devotos acompanharem a novena em honra ao seu santo de devoção.

Nesse dia vou jogar uma rodada de bingo em honra a meu pai.

E quero fechar a linha com o 22.

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