Início Opinião CRÔNICA: OS OLHOS AZUIS DE VÓ ALBERTINA

CRÔNICA: OS OLHOS AZUIS DE VÓ ALBERTINA

André Frigo *

Em 1918, minha vó Albertina tinha 17 anos e acompanhava assustada as carroças que passavam em frente à sua casa, transportando os corpos das vítimas da gripe espanhola. Nas conversas na sala, com a família toda reunida, não se falava de outro assunto. Perdeu o sono quando descobriu que os mortos eram enterrados em vala comum, sem identificação e sem que a família tivesse um lugar para reverenciá-los.

Essas cenas marcaram minha vó Albertina, tanto que ela sempre recordava aqueles meses no final de 1918. Minha vó não sabia, mas de espanhola a gripe não tinha nada. Havia dado o primeiro sinal de vida no mês de março, nos Estados Unidos. Em abril desembarcou na Europa, levada provavelmente por soldados americanos. No Brasil, há relatos que chegou em agosto ou setembro trazida por uma fragata cujos marinheiros estavam contaminados. A epidemia foi avançando de porto em porto onde o navio atracava. A pandemia não poupou nem o presidente Rodrigues Alves que faleceria sem tomar posse do seu terceiro mandato.

Agora, 102 anos depois, estou eu com os olhos pregados na televisão acompanhado apreensivo as notícias que aparecem em ritmo frenético. Notícias do mundo todo e todo mundo sendo notícia. As redes sociais completamente alucinadas despejam notícias, fake News, memes e depoimentos ampliando a desorientação de todos.

Agora, 102 anos depois, as autoridades, tal como ontem, mandaram fechar escolas, comércio, cinemas, cabarés, bares, restaurantes, festa populares e eventos esportivos. Tal como a 102 anos, o sistema de saúde é precário, não tem leito suficiente para todos os infectados, as autoridades não são transparentes, são incoerentes e não se entendem. Em 1918, esse isolamento social foi ordenado quando a doença já havia avançado e ficado sem controle. Em 2020, as atitudes para colocar a sociedade em quarentena, mesmo que desencontradas, vão sendo tomadas no início do surto.

Minha vó Albertina tinha 74 anos quando morreu vítima de complicações da asma que a acompanhou por 40 anos. Sobreviveu, assim como todos da sua família sobreviveram a gripe espanhola. Ela tinha olhos muito azuis, quase transparentes que não pareciam feitos para ver os horrores provocados pela pandemia.

Eu penso nos olhos de minha vó, na paz e tranquilidade que eles sempre anunciavam. Penso nos olhos dela sempre que a angústia pelo futuro me assola. Nesses dias tenho pensado nos olhos azuis de minha vó Albertina com muita urgência. E sempre que consigo rever aqueles olhos, um sopro de esperança apaga a névoa. Os olhos azuis de minha vó Albertina são milagrosos.

* É jornalista, servidor público aposentado e diretor-administrativo do Notícias Gerais

(Imagem da capa: Gripe Espanhola. Reprodução/Redes sociais)

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