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EXISTE RELAÇÃO ENTRE MACHISMO E CONSUMO DE CARNE?

Imagem: reprodução – freepik

Kamila Amaral
Notícias Gerais

Você já parou para pensar se existe uma relação entre o machismo e consumo de carne? Já se perguntou porque em um churrasco de fim de semana os homens preparam a carne e as mulheres cuidam da salada ou vinagrete?

Publicado em 1990 – e lançado no Brasil 20 anos depois – o livro “A Política Sexual da Carne: Uma Teoria Crítica Feminista-vegetariana”, de Carol Adams, já se propunha a explorar e relação entre os valores patriarcais – cuja premissa básica é o homem como centro de poder – e o consumo de carne.

Em sua obra, Adams descreve o que conceitua como referencial ausente que, em relação aos animais, consiste na ideia de apresentar a carne como um produto final sem qualquer ligação com um animal morto. No âmbito feminista, o referencial ausente seria o consumo – dos mais diversos tipos – de corpos femininos, ou seja, a objetificação e sexualização do corpo das mulheres.

Para a autora, os homens exploram os animais não humanos assim como exercem poder sobre as mulheres.

Por não conseguir enxergar os animais como alimento, a jornalista Elizângela Araújo se tornou vegetariana há 30 anos. Na última década, ela também eliminou de sua dieta todo e qualquer produto de origem animal, passando a ter uma alimentação vegana.

Para ela, não é preciso pensar muito para estabelecer uma relação entre o machismo e o consumo de carne, basta observar como existe uma percepção no imaginário popular da carne como alimento que “dá sustância”, e sustância entendido como força, disposição, é algo sempre ligado ao ideal masculino.

Araújo também relaciona o machismo e o consumo de carne a partir da lógica da exploração, assim como os humanos exploram os animais, o machismo explora as fêmeas até a exaustão. “Mas é uma questão também muito mais ligada ao especismo, que é a ideia de que o ser humano tem mais valor do que as demais espécies. Essa ideia prevalece e é muito difícil, para a maioria das pessoas, se desvencilhar dela”, diz.

A jornalista cita ainda a questão da carne enquanto produto capitalista cujo mercado cresce mesmo durante a crise. Segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne, o Brasil produz 10 milhões de toneladas de carne bovina atualmente, sendo quase dois milhões de toneladas para exportação.

“Então, ser vegetariano ou vegano é uma decisão individual com grande impacto coletivo à medida que mais gente começa a abandonar o hábito de consumir carne”, defende.

Apesar de não poder citar em suas vivências pessoais uma diferença na reação das pessoas ao vegetarianismo/veganismo em homens e mulheres, a jornalista afirma perceber sim a associação da carne ao universo masculino. “As propagandas de casas de carne, por exemplo, têm uma estética mais voltada ao público masculino. Hamburguerias, por exemplo, miram o público masculino”, cita.

A assessora de comunicação Rafaela Silva Pelegrino, apesar de ter estudado bastante sobre o vegetarianismo e seus impactos quando parou de comer carne, em abril do ano passado, não adentrou na discussão sobre machismo e consumo de carne. Ainda assim, ao ser questionada sobre o assunto, ela rapidamente fez a mesma associação que Elizângela Araújo: a carne está relacionada à força, vitalidade e essas são características atribuídas ao homem e não a mulher.

“Acho que as pessoas que são veganas e vegetarianas, principalmente as mulheres, enfrentam um pouco desse estigma de fraqueza na cabeça das pessoas”, afirma.

Sem se recordar de ter tido contato com homens veganos ou vegetarianos, ela não sabe dizer se existe diferença no tratamento entre homens e mulheres que optaram por parar de consumir carne e outros alimentos de origem animal. No entanto, afirma que ainda existe muito julgamento rodeando essa escolha, ou associando-a apenas a proteção animal ou a taxando como “frescura”.

Pelegrino ressalta que a questão do consumo de carne, principalmente, não está ligada apenas à proteção animal, envolvendo diversas outras pautas como a redução de gases poluentes, da exploração dos trabalhadores do setor pecuário e também a preservação da cultura e território indígena, que sofre cada vez mais com a pressão para cessão de terras para criação de gado e plantio de soja, por exemplo.

“Depois que eu comecei a me envolver mais em causas ambientais (…) eu percebi que não era só sobre os impactos nocivos que a indústria de gado tem no meio ambiente, mas as diversas relações e atitudes que a gente tem no nosso dia-a-dia que podem impactar negativamente o meio ambiente, o planeta e, consequentemente, a nossa vida”, destaca a profissional da comunicação.

A carne e o preconceito

Uma pesquisa encomendada pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) – e realizada pelo IBOPE Inteligência – em 2018, apontou que 14% da população brasileira se declara vegetariana, o que corresponde a cerca de 30 milhões de pessoas.

Segundo os dados da pesquisa, 16% das pessoas que se declaram adeptas ao vegetarianismo são homens e 13% são mulheres. No entanto, pesquisas apontam que, no geral, o número de mulheres veganas e vegetarianas é maior que o dos homens.

“Homem de verdade come carne”

Mariana Araújo é uma cozinheira que trabalha com a produção de alimentos veganos há mais de seis anos, ela conta que em suas redes sociais é possível perceber uma diferença expressiva em relação ao percentual de homens (cerca de 20%) e mulheres (cerca de 80%) que consomem seus produtos.

Além de apontar que, historicamente, a sociedade, principalmente ocidental, sempre associou o consumo de carne à figura masculina, à virilidade e ao poder, ela sinaliza também que os homens adeptos do vegetarianismo/veganismo também enfrentam estigmas e preconceitos carregados de homofobia, uma vez que o imaginário popular estabelece que “homens de verdade” comem carne.

“Até porque em todos momentos históricos, quando se teve que fazer uma opção sobre quem vai consumir a carne, foram sempre as classes mais altas e normalmente os homens os ‘privilegiados’. Para mim é muito óbvia essa relação de poder estabelecida”, declara Mariana.

Mesmo sendo vegetariana há aproximadamente 16 anos e vegana a mais de seis, ela conta que, para ela, essa reflexão sobre a relação entre machismo e consumo de carne foi uma reflexão mais tardia. “Eu tenho amigas para quem o feminismo e a compreensão das nossas opressões, que sofremos enquanto mulheres, vieram primeiro que a compreensão do veganismo também como alternativa a opressão sofrida pelos animais, mas para mim foi o contrário”, sinaliza.

Como profissional do ramo, ela aponta também que somente nos últimos anos o mercado passou a investir mais em alimentos e produtos veganos e vegetarianos. “Quando eu me tornei vegetariana, as opções eram absolutamente limitadas. (…) Muitas pessoas que se tornaram vegetarianas e veganas há alguns anos acabaram indo trabalhar na produção de comida por conta própria, porque surgiu uma oportunidade e uma necessidade”, finaliza.

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