Lucas Maranhão *
O ano era 1923 e o pequeno Akira Kurosawa acompanhava seu irmão mais velho, Heigo, ao cenário de devastação deixado pelo Grande Terremoto de Kaito – que havia acabado de acontecer. Fontes dizem que mais de 105 mil pessoas teriam morrido e 37 mil desaparecido naqueles dias. Akira tinha apenas treze anos e evitava olhar os cadáveres em meio aos escombros. Seu irmão o impediu. Heigo disse que Akira deveria enfrentar os seus medos cara-a-cara – diretamente.
Sem dúvida, o impacto desse evento permaneceu com Akira até seus últimos dias de vida. Até o seu último respiro, aos 88 anos, seis décadas passariam – cinco delas como diretor de cinema. Foram mais de trinta filmes lançados e todos eles provam: Akira sabia enfrentar seus medos de frente e exorcizá-los em forma de arte.
Tornando-se um dos maiores cineastas japoneses, ou melhor, um dos maiores cineastas de todos os tempos. sua influência não se resumiu só ao seu país, mas criou raízes pelo mundo, que germinaram em gerações de novos diretores, impactando especialmente o cinema americano da década de 70 (que já comentamos na coluna).
Mais conhecido pelos filmes de samurais, tornou-se popular, conquistando grande público, sem nunca deixar de criar estórias ambiciosas e compondo alguns dos planos mais lindos da história do cinema. Com o tempo, foi se especializando em um estilo de narrativa shakeasperiano que incorporava em sua mise-en-scène o tradicional Teatro Nô. Sua estética única envolvia uso constante de cenas com momentos climáticos intensos (fortes chuvas, ventos, calor…), geralmente com intenção de refletir o estado psicológico do personagem.
Quase sempre colocando em cena os fiéis e geniais atores Takashi Shimura e Toshirô Mifune, tinha a mania de repetir elenco, além de usar grande número de figurantes, criando cenas de grandiosas batalhas – um enorme desafio de direção em uma época sem nenhuma possibilidade de efeitos digitais disponíveis.
RASHOMON: O início (1943 – 1952)
Em seu início de carreira, Kurosawa precisou enfrentar a censura do governo de extrema-direita japonês durante a Segunda Guerra Mundial. Seu primeiro filme, A Saga do Judô (1943), teve 18 minutos cortados pela censura, que se perderam para sempre. Apenas com o final da guerra, o sistema cinematográfico japonês pôde recuperar plena liberdade artística, o que é visto claramente em filmes como Cão Danado (1948).
Um de seus melhores filmes deste período, Cão Danado é uma obra de detetive que acompanha a história de um jovem policial (Toshirô Mifune), o qual tem sua arma roubada, e sua honra ferida só aumenta quando descobre que crimes estão sendo cometidos com ajuda do objeto. Para recuperá-las (arma e honra), ele precisa se infiltrar nas periferias de uma Tóquio ainda marcada pelo fim da guerra.
O grande sucesso internacional de Kurosawa, entretanto, viria um ano depois com Rashomon (1950). Centrado no Japão Feudal, o filme narra a história do julgamento de um crime: um famoso bandido mata um samurai e estupra sua noiva. Porém, a maneira como Kurosawa constrói a narrativa é genial. Misturando linhas narrativas, ele apresenta o crime através de variadas perspectivas, nos levando a interpretar qual seria mais próxima da realidade (se existe uma).
Inclusive, “efeito rashomon” virou uma comum expressão para múltiplas interpretações da realidade. O filme conquistou público pelo mundo e deu a Kurosawa um Oscar – dizem que foi Rashomon que convenceu a Academia da necessidade de criar uma categoria para filmes estrangeiros.
SETE SAMURAIS: Os grandes épicos (1954 – 1965)
O segundo momento da carreira de Kurosawa seria grandioso. Se Rashomon foi sua porta para o mundo, Os Sete Samurais (1954) se tornaria seu filme mais conhecido até os dias atuais. Com mais de três horas de duração, o épico conta a história de um vilarejo que se encontra à beira de uma invasão por saqueadores. Como última esperança, encontram um generoso samurai (Takashi Shimura) disposto a ajudá-los. Sabendo da dificuldade da ação, o personagem de Shimura consegue reunir mais seis samurais para treinar os moradores do vilarejo e ajudar no planejamento de uma estratégia de defesa. No último ato, as batalhas meticulosamente filmadas e o elenco em grande escala dão ao filme um merecido status de clássico do cinema.
Os Sete Samurais já mostrava o que seria essa fase da carreira de Kurosawa. Alguns anos depois, lançaria Trono Manchado de Sangue (1957), uma adaptação de Macbeth para a realidade do Japão Feudal. Posteriormente, mergulharia em uma realidade mais fantástica com A Fortaleza Escondida (1958). Hoje considerado um de seus filmes mais lúdicos, foi, à época, um enorme sucesso de público, sendo, inclusive, uma das maiores inspirações para George Lucas na criação de seu Guerra nas Estrelas (1977).
Já Yojimbo (1961) levaria o diretor a fazer uma leitura do Japão Feudal como uma terra sem lei, e exatamente por isso se tornaria uma grande influência para os filmes de faroeste. Nele, Toshirô Mifune interpreta um samurai solitário que vaga sem destino, até parar em uma pequena cidade aterrorizada por uma batalha entre dois clãs. Determinado a ajudar os moradores em sua própria maneira, ele se infiltra nos dois lados do conflito para destruí-los por dentro.
O filme se tornaria a maior bilheteria de sua carreira até o momento, o que levaria a uma sequência: Sanjuro (1962). Apesar de ser um novo sucesso comercial, a complexidade de suas obras aumentava de um filme para o outro, algo que colocava em dúvidas sua capacidade de continuar desenvolvendo produções de larga escala – como o próprio diretor acreditava. O Barba Ruiva (1965) daria fim a um grande ciclo. Distanciando-se dos samurais, mas ainda pisando no Japão Feudal, Kurosawa cria um filme sobre um hospital que atende a moradores de uma comunidade em extrema pobreza.
O protagonista é um jovem médico individualista (Yuzô Kayama) que, enviado à contra-gosto para o hospital, prefere o prestígio a ajudar pessoas que realmente precisam. Aos poucos, através do contato com o diretor do estabelecimento (Toshirô Mifune, o Barba Ruiva do título) e os pacientes, ele vai desenvolvendo um sentimento de humanidade.
A beleza e humanismo passados pelo filme são marcas desse rico período de sua carreira, assim como o longo tempo de filmagens, que duraram um ano. Porém, os problemas que começavam a abalar a indústria cinematográfica do Japão criavam um problema para os métodos de Kurosawa e iniciariam um novo e difícil (mas não menos rico) período de sua carreira.
RAN: Kurosawa brinca com cores (1970 – 1993)
Com a dificuldade de financiar projetos no Japão, Kurosawa aceitou um convite que já havia sido feito muitas vezes: comandar um projeto em Hollywood. A produção de Tora! Tora! Tora! (1970), entretanto, seria conturbada. Depois de poucas semanas de filmagem e trabalhando com uma equipe diferente da usual, ele foi incapaz de se enquadrar nos métodos hollywoodianos, algo que levou parte da equipe a dizer que ele sofria de problemas mentais. A Fox, que comandava a produção, realizou exames psiquiátricos que revelaram que Kurosawa sofria de distúrbio do sono, além de agitação causada por ansiedade. Ele foi demitido e o filme completado por outros diretores.
Sua moral na indústria estava abalada e sua capacidade de voltar a dirigir outro filme colocada em dúvida. Para provar sua capacidade, se voltaria para um projeto de pequena escala em sua terra natal: Dodeskaden (1970), o seu primeiro em cores. O fracasso comercial da produção aprofundou seu abismo artístico. Desiludido, Kurosawa precisou da União Soviética para voltar ao trabalho. Com Dersu Uzala (1975) voltaria ao triunfo, faturando seu segundo Oscar (sim, um filme da União Soviética venceu um Oscar no meio da Guerra Fria).
Porém, suas duas maiores obras desse período ainda estavam por vir. Kagemusha – A Sombra de um Samurai (1980), precisaria de dois fãs para ser produzido. Não quaisquer fãs: Francis Ford Coppola e George Lucas, que tendo acabado de lançar seus maiores sucessos (O Poderoso Chefão e Guerra nas Estrelas, respectivamente) tinham a moral suficiente para juntar essa verba. O filme marca o retorno de Kurosawa para os grandes épicos – o primeiro dele em cores.
O uso quase surrealista das cores fazem do diretor o mais talentoso em fazer a transição entre as duas tecnologias. Kurosawa parecia ter um prazer imenso em explorar paletas fortes e diversas. O tom que usava para representar o sangue, por exemplo, é de um vermelho intenso e vivo.
Já Ran (1985) seria o maior filme da sua carreira em escala. Podendo usar milhares de figurantes simultaneamente, ele cria cenas de batalhas gigantescas que beiram à perfeição cinematográfica. Seu melhor filme nesta fase (e talvez, em toda sua carreira), Ran atinge o estágio que Kurosawa sempre sonhou. Aos 75 anos de idade, o diretor parecia se sentir completo, enfim. Novamente se inspirando em Shakespeare, Kurosawa se eleva ao nível do artista britânico que tanto o inspirou e não deixa dúvidas de que seria lembrado eternamente em suas obras.
Ainda encontrando tempo para novas produções, vale destacar o filme-antologia Sonhos (1991). Como o próprio título entrega, a série de curtas estórias é inspirada em sonhos que tinha constantemente. O filme é um deleite de um diretor que sabia não ter mais muito tempo para trabalhar, mas ainda tinha coisas a dizer.
Como era genial Akira Kurosawa.
- É jornalista, designer e apaixonado por cinema.
Parabéns e o artigo esta perfeito e bem explicativo sobre o
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