Início Opinião Crônica HÁ UM VILAREJO À ESPERA DAS PESSOAS PRETAS?

HÁ UM VILAREJO À ESPERA DAS PESSOAS PRETAS?

Foto: El País

Geovanna Rodrigues *

Acordo, ponho uma playlist pra tocar e sento-me à mesa do café da manhã. Ligo o celular. Olho as notícias. Logo após, Ele chega, senta-se junto a mim e em pouco tempo ocupa todo o espaço – comodamente – me causando desconforto. Rapidamente, Ele leva embora todo o fio de esperança que ainda havia em mim. Bem cedo Ele se faz presente à minha mesa, muito antes dos meus planos para o futuro… e facilmente retrai esses pensamentos. 

O vapor do café envolve os meus devaneios. Eu venho de família preta. Eu sou negra, a minha mãe é negra, minha avó é negra, minha bisavó era negra e a minha trisavó era negra. Certamente, a minha tataravó e os ancestrais dela também eram, mas não temos registros. Quando criança, eu sentava na varanda aos pés dos mais velhos e assim cresci ouvindo histórias que percorriam as Minas Gerais e paravam na dona Maria de Lourdes, a trisa Lurdinha. Dessa forma, desenvolvi um certo gosto por saber mais sobre essa família que gerou mulheres tão fortes e, desde cedo, outra coisa ficou óbvia para mim: nós todas somos vítimas d’Ele, que nos persegue há mais de 500 anos. Como consequência disso, o apagamento da nossa ancestralidade e da documentação desta é algo que me aflige. 

nós todas somos vítimas d’Ele, que nos persegue há mais de 500 anos. Como consequência disso, o apagamento da nossa ancestralidade e da documentação desta é algo que me aflige. 

Quando eu penso nas famílias brancas que sonham em visitar os vilarejos europeus de onde vieram, não consigo deixar de me perguntar de onde eu vim. Entre pesquisas e conversas, pouco descobri sobre a minha ascendência, mas ainda assim eu gostaria de contá-la. No entanto, hoje, em 2020, ainda não podemos nos dedicar apenas a contar as histórias de potencialidade do nosso povo, pois ainda somos obrigados a nos ater às notícias de brutalidade contra os nossos corpos e de nossas mortes. 

Volto a atenção ao que está à minha frente. Do alto-falante do celular, sai a voz forte de Elza Soares, que entoa o famoso refrão “a carne mais barata do mercado é a minha carne negra”. Na tela do celular, mais uma vítima da violência policial. Na xícara de café preto, a fumaça ainda dança e o cheiro parece mais amargo. Por um instante eu paro, respiro fundo, os olhos enchem d’água e, finalmente, eu me permito sentir algo além de indignação. Ele, ainda sentado à outra ponta da mesa, assiste a triste cena satisfeito. Penso nessa família, outra destruída pelo projeto genocida que nos assombra. Será que eles sabem de onde vieram? 

Desligo o celular, desfaço a mesa do café, vou para a sala e Ele me acompanha. Ao ligar a TV, a frase dita pelo vice-presidente da República está estampada na tela, “No Brasil, não existe racismo”. Opa! Pera aí! Olho para o lado e Ele ainda está parado no mesmo lugar. Então, como assim Ele não existe? Quer dizer que não é por causa dEle que eu não sei de onde eu vim? Não é por causa dEle que hoje mais uma família chora a perda de um dos seus?

Ele sorri enquanto eu lamento. Lembro-me da canção. Mesmo não conhecendo as histórias exclusivas dos meus antepassados, eu sei que como muitos outros eles lutaram contra Ele e morreram por isso. Hoje, continuamos a luta para que não só os feitos deles sejam reconhecidos, mas para que não sejamos mais silenciados. Diante disso, eu imagino um mundo utópico no qual Ele não se senta à minha mesa diariamente e eu e meus irmãos da cor podemos sair de casa com a certeza de que voltaremos. Espero poder contar as histórias sem me preocupar com as dores. Por fim, o dia se estende com Ele ao meu lado e, pouco antes de eu cair no sono, Ele vai embora, mas avisa: Voltarei amanhã a tempo do café. 

* É estudante de Comunicação – Jornalismo da UFSJ e produziu este texto sob a orientação do professor Paulo Caetano para a disciplina Produção Textual.

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