Najla Passos *
Na divisa entre os municípios de Barbacena e Antônio Carlos fez bastante calor na tarde da última quinta (17). Sol a pino. Tempo seco. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emite alerta sobre a baixa umidade do ar, entre 12% e 20%, ressaltando riscos para incêndios florestais e para a saúde, como ressecamento da pele e desconforto nos olhos, nariz e boca.
Contrariando a recomendação de evitar o sol entre 10h e 17h, moradores do distrito de Sá Fortes arriscam mergulhos no Rio das Mortes, próximo ao antigo pontilhão da Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB). Além de cortar as águas turvas do rio que faz jus ao nome, o belo pontilhão também corta a estradinha de terra que leva à histórica Fazenda do Registro Velho, onde, há 300 anos, o inconfidente padre Claudio Manoel da Costa conspirava com José Joaquim da Silva Xavier, o Tirandentes, contra a Coroa Portuguesa.
Alguns metros acima, no entroncamento da linha principal com uma outra secundária, o ferroviário Maurivan da Silva Paixão, 48 anos, aguarda sentado sob o sol, à beira dos trilhos, o rádio alertar sobre mais uma passagem de trem de carga. A linha de ferro hoje operada pela MRS escoa o minério produzido pela Vale até os portos do Rio de Janeiro e de São Paulo, de onde ganha o mundo.
Maurivan não está ali para operar o desvio, como acontecia no passado. Hoje, a direção que o trem toma é definida remotamente pelo Centro de controle Operacional (CCO), que ele não tem certeza se fica em Juiz de fora ou Belo Horizonte. A alavanca que aciona o desvio manual fica trancada a sete chaves. Menos esforço para o trabalhador.
A função do ferroviário é aparentemente mais leve: sinalizar para que os maquinistas redobrem a atenção naquele trecho, onde seus colegas fazem reparos de rotina nos dormentes da ferrovia. Mas Maurivan trabalha duro: tem que parafusar cerca de quinze placas de alerta no decorrer da linha…. e passar o dia sob o sol escaldante.
Ele se alegra com a aparição inesperada da reportagem do Notícias Gerais. Puxa logo um dedo de proza para matar o tempo. “Vocês gostam de trens, de ferrovias? Então, deixa eu contar uma coisa para vocês: já trabalhei na linha do trem turístico que vai de São João del-Rei a Tiradentes”, conta ele, com orgulho. Ferroviário desde 2004, já passou pelas diferentes concessionárias que dominam a exploração do transporte ferroviário brasileiro pós privatização da EFCB.
Foi entre 2009 a 2010 que ele teve a alegria de trabalhar no trem turístico da menor bitola do mundo. Bitola, no linguajar ferroviário, é a distância entre os trilhos. “Lá, entre São João e Tiradentes, na antiga Estrada de Ferro Oeste de Minas, a bitola é de apenas 0,76 metro, enquanto aqui a bitola é bem maior, tem 1,60 metro”, compara ele, mostrando o conhecimento adquirido na prática laboral.
Se tem saudades daquela época? Claro. Maurivan diz que o trabalho ali era mais leve. “Lá são turistas, aqui é minério”, afirma. Se gosta de ser ferroviário? Não reclama, mas é sincero. “Ah, a gente trabalha mesmo é porque precisa, né, moça?“, fala com aquela ponta de angústia de quem sente o peso dos anos cobrando o preço pelo trabalho duro.
A morte o assombra. Com os olhos fixos no cruzamento da estrada de ferro com a de terra batida, aponta uma cruz fixada ali. “Um morador da região passou aqui mais cedo, me ofereceu um café e contou a história da cruz. Parece que foi um casal que esqueceu da vida ali, namorando sobre a linha… e com trem não se brinca”, alerta.
Ele mesmo já passou seus apuros. De uma feita, foi suspender um dormente com um colega que o estava apressando e quase teve o dedo dilacerado. “Levei uns pontos, mas consegui recuperar o movimento. No fim ficou tudo bem”, alegra-se.
Dia e noite, noite e dia
Natural de Candeias, há cerca de 50 quilômetros dali, Maurivan deixa a família nas madrugadas de segunda e fica até a sexta “no trecho”, percorrendo os 1.642 quilômetros operados pela MRS em Minas, Rio e São Paulo. Naquele dia estava alojado em Barroso, mas os lugares mudam constantemente. Sábados e domingos, passa em casa. E depois recomeça tudo outra vez.
Os trens da MRS não param nunca. Mesmo durante a pandemia da Covid-19, continuaram frenéticos, já que a mineração foi considerada atividade essencial. A malha viária operada pela empresa corresponde a 6% da existente hoje no Brasil. É por ela que é transportada cerca de um terço de toda a produção nacional. São quase 800 locomotivas e mais de 18 mil vagões, o que representa 16% da frota ferroviária do país das rodovias.
A pequena folga que Maurivan tira para prosear com a reportagem do Notícias Gerais termina logo. O rádio soa avisando que o trem está próximo. Ele checa se as placas sinalizadoras estão devidamente fixadas. O apito já se faz soar antes da curva. Ele se levanta, mira o horizonte. Quando o trem se aproxima velozmente, acena para o maquinista, que apita em cumprimento.
O barulho é ensurdecedor e o trem passa em velocidade tão acelerada que faz até soprar o vento. Mesmo assim, a sucessão de vagões dura uma porção de tempo suficiente para chamar à reflexão. O trem é longo. Faz lembrar o poema de Carlos Drummond de Andrade, feito em outra cidade mineira e em outra época, mas que retrata um sentimento atual e comum a muitos de nós.
O maior trem do mundo
Carlos Drummond de Andrade
O maior trem do mundo
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão
O maior trem do mundo
Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
Engatadas geminadas desembestadas
Leva meu tempo, minha infância, minha vida
Triturada em 163 vagões de minério e destruição
O maior trem do mundo
Transporta a coisa mínima do mundo
Meu coração itabirano
Lá vai o trem maior do mundo
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei não voltará
Pois nem terra nem coração existem mais.
(Publicado em 1984, no Jornal “O Cometa Itabirano”)
* Najla Passos é mineira, jornalista, mestra em Linguagens e Literatura Brasileira e diretora-executiva do Notícias Gerais. Nesta edição, contou com a parceria de Juan Szczypior em texto e imagens.
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