Tulio de Oliveira Tortoriello *
Minha infância entre igrejas, sinos e carnavais me fez um são-joanense apaixonado. Pude compartilhar, aqui neste espaço, minhas primeiras impressões da cidade, de seu povo e de suas manifestações culturais.
Alguns anos se passaram e veio a adolescência. Como todos nessa fase, a necessidade de pertencer a uma tribo, de ser parecido com os outros da minha idade era urgente. Convenhamos que, já naquela época, frequentar igrejas e acompanhar procissões não estavam na cartilha ideal de um adolescente descolado. No mesmo período, fui estudar e trabalhar em Belo Horizonte. Assim, toda minha paixão por coisas antigas e tradicionais da terra natal ficou mantida numa gaveta que eu quase não abria ou armazenada na parte alta de um armário, junto a velhos guardados. Mas nunca esquecida.
Após os trinta anos de idade, já de volta a São João há alguns anos e atuando no ramo comercial, tive a oportunidade de me tornar membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural, um trabalho voluntário, sem remuneração, vale dizer.
Tal conselho foi criado em 16 de julho de 1998 e possui duas áreas da cidade sob sua jurisdição: a área chamada de Centro Histórico, onde a exigência de preservação é maior e as demolições e alterações em imóveis são autorizadas após estudo mais aprofundado, e a área de entorno, onde as demolições e alterações são autorizadas com maior liberalidade. Ambas cobrem uma extensão territorial maior do que a área de jurisdição do IPHAN, o instituto federal do patrimônio. Tomei posse no referido conselho em abril de 2003 e, com isso, tirei da gaveta e do fundo do armário a minha paixão pelas coisas da cidade.
Na rotina do Conselho, relatava processos de reforma de imóveis e participava de reuniões, discutindo e votando sobre tombamentos, demolições e intervenções em construções da cidade, desde edifícios e grandes sobrados centrais até pequenas residências no entorno da área tombada. Com algum tempo, na minha condição de membro novato e leigo, comecei a perceber que, muitas vezes, gastávamos um tempo interminável discutindo sobre uma pequena reforma em uma modesta residência do bairro Senhor dos Montes, que fica na área de entorno, mas dedicávamos um tempo bem menor dando sugestões para resolver problemas sérios de trânsito no núcleo histórico da cidade ou discutindo o uso de espaços e monumentos tombados para eventos culturais em benefício da comunidade local.
Em todas as questões abordadas, a condição dos donos de imóveis ou a relação da comunidade com seu patrimônio eram, a meu ver, insatisfatoriamente debatidas. Tal fato começou a gerar em mim certa inquietação e eu sentia necessidade de, de algum modo, entender e exteriorizar a minha perturbação. Acredito que estava ali o embrião do meu projeto de mestrado, que alguns anos mais tarde se concretizou com a dissertação “Usos sociais do patrimônio histórico, artístico e cultural de São João del-Rei: identidade e hibridismo cultural”.
Nunca pensei em discutir questões arquitetônicas, pois não possuo formação acadêmica para tal. As discussões sobre o patrimônio cultural, através de palavras e textos, me interessavam. Comecei a analisar as polêmicas em torno do tema e tentar compreender sua relação com a comunidade. Essa é uma discussão que teve início na época do tombamento do conjunto arquitetônico são-joanense, na primeira metade do século passado, mas prolonga-se até nossos dias. O conflito de interesses entre proprietários de imóveis e a população, de um lado, e os órgãos públicos de proteção do patrimônio, de outro, sempre se manifesta nos debates sobre preservação, não só em São João del-Rei, mas em todo o mundo.
Aqui, esse conflito sempre gerou um material rico para pesquisa e análise, como artigos de jornais locais da época do tombamento da cidade e processos de tombamento e alterações de imóveis dos órgãos responsáveis pelo patrimônio cultural. Para ilustrar um pouco dessas discussões, transcrevo a seguir um trecho de um editorial do Diário do Comércio, um antigo jornal local, de 30 de abril de 1946: “Em São João del-Rei, basta o tombamento das igrejas, pontes, chafariz e uns 3 edifícios, mesmo porque artístico é o que temos: histórico, nenhum deles, a não ser a casa de Bárbara Heliodora”. Felizmente, posições desse tipo, por parte de um periódico local, seriam bastante improváveis nos dias de hoje.
“O patrimônio está inserido na vida das pessoas, nos acontecimentos sociais e culturais mais diversos”
Sempre apreciei o chamado “núcleo histórico” da cidade e isso algumas vezes me levou a caminhadas solitárias na madrugada, após uns goles a mais de cerveja ou vodka, pelas ruas da Prata, Direita e Santo Antônio, pelos largos e praças, para “viajar” e sentir a cidade. Também frequentei vários eventos culturais que tinham lugar na cidade, como o Festival de Inverno da UFMG, nos anos de 1986 e 1987 e posteriormente o Inverno Cultural da UFSJ, que começou a ser realizado a partir de 1988 e que persiste até hoje, sendo um grande orgulho para a cultura de São João.
Nesses eventos, podíamos assistir a shows de samba e música popular brasileira de grandes nomes nacionais, no espaço mágico e surpreendente da rotunda, em meio às Marias-Fumaças, assistir a peças em um Teatro Municipal, do século XIX, apreciar performances de artistas nos largos de São Francisco, do Rosário e do Carmo e terminar as noites nos bares montados em vagões de trem e nos galpões da rede ferroviária. Me sentia um cidadão orgulhoso e privilegiado!
Minhas vivências, cristãs e pagãs, da infância, minhas experiências no conselho de patrimônio e as sensações que experimentei em diversos eventos culturais, por três décadas e muitos invernos na fria São João, deixaram claro para mim que casas e prédios antigos não tem valor se não forem habitados e usados, que igrejas não fazem sentido sem gente rezando, enfim, que patrimônio histórico não existe sem povo. Mais liberdade e criatividade nas relações com o patrimônio são, a meu ver, essenciais, pois devemos considerar que ele não existe por si só, nem de modo estático e distante. O patrimônio está inserido na vida das pessoas, nos acontecimentos sociais e culturais mais diversos.
Hoje, mais do que nunca, é premente pensar nessas “contradições sociais”. Preservar os monumentos, tentando mantê-los distantes da população que os rodeia, sob alegação de risco de dano, além de ser utópico, é tirar desse povo a oportunidade de usufruir de um patrimônio legado por seus antepassados e legitimamente seu. Os órgãos oficiais de proteção do patrimônio parecem, às vezes, não perceber que, ao contrário dos objetos históricos guardados em museus, “os monumentos abertos à dinâmica urbana facilitam que a memória interaja com a mudança”, como sabiamente disse o antropólogo Néstor Canclini. Mas essa é uma discussão “que rende muito assunto”, como gostam de dizer os mineiros. E sobre ele poderemos falar mais, em outras oportunidades.
* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Letras (linha de pesquisa Literatura e Memória Cultural) pela Universidade Federal de São João del-Rei, com dissertação defendida sobre “Usos sociais do patrimônio histórico e cultural de São João del-Rei”, ex-membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de São João del-Rei. de 2003 a 2009.