Edu Tollendal *
Para Dadá
Todos queremos que a pandemia passe e temos que ter esperança. A esperança é a alma dos tolos, dos afoitos, dos crédulos e, também, dos revolucionários que – segundo dizem céticos e estoicos – costumam ser carne do mesmo barro. Mas é bom observarmos esta reflexão de Eric Hobsbawn, quando a guerra acaba, em 1945: em 39, ninguém poderia imaginar o sofrimento humano que a guerra traria, até que a guerra aconteceu. Podemos, talvez, acrescentar: ninguém poderia imaginar o sofrimento humano que a civilização cristã ocidental exigiria dos homens, até que ela aconteceu. Logo, tenhamos cautela com a pandemia.
Durante a guerra, o jovem Hobsbawn serve no exército britânico, mas nunca o exército serviu-se dele, nem mesmo como tradutor, uma vez que era fluente em alemão, tendo nascido no Egito, passado a infância em Viena e a adolescência na trepidante Berlim da República de Weimar. Hobsbawn era inapto. Não conseguia fazer um ombro-armas com elegância e vigor. Quando o regimento em que estava lotado seguia para os sangrentos campos de batalha, na África ou no Pacífico, Hobsbawn era transferido para outro regimento. Passou a guerra em Londres, vendo as bombas da Luftweffe caindo sobre a cidade e esquivando-se. Esta inaptidão salvou-lhe a vida. Todos os seus colegas, professores um pouco menos inaptos que ele no manejo das armas, morreram na guerra.
Passada a guerra, o Sr. Hobsbawn admirou-se com o progresso que alcançara a civilização ocidental, na Inglaterra, com o advento da sociedade de consumo. Vivia-se com mais conforto do que nos tempos de nossos pais. Trata-se de uma admiração admirável, uma vez que o jovem Hobsbawn sempre foi fiel ao comunismo.
Desde 1932, declarou-se comunista e nunca abandonou as enfadonhas reuniões do Partido; só nos PCs – o dizia – se encontram homens capazes de dar a vida por uma causa. E, por isso, nunca deixou o Partido, mesmo após as denúncias de Nikita Kruchev, no XX congresso de 56, que provocaram grandes baixas em suas fileiras. O Sr. Hobsbawn sempre se preocupou com o sofrimento humano de origem material e acreditava que o sofrimento humano com tão equacionável solução, carecia da ação do PC para ser mitigado.
Nos anos 60, como professor e conferencista de uma poderosa universidade, já entrado nos 50 anos, o Sr. Hobsbawm pôde, enfim, possuir uma residência privada com jardim, sem nunca ter se encantado com os cuidados da jardinagem; pode, também, comprar seu primeiro automóvel, mas nunca perdeu uma manhã de domingo lavando o seu carro.
O Sr. Hobsbawn olhava ao seu redor e compreendia que os benefícios de que desfrutava com a implantação do Estado de Bem-estar Social, pelos ingleses, não atendia as necessidades básicas da classe trabalhadora. E concluiu, pela segunda vez, que ainda não era chegada a hora de deixar o Partido – onde permaneceu até o fim de seus gloriosos dias, sempre com a mesma aptidão.
Hobsbawn admira-se, também, da pujança da cultura burguesa no apogeu do capitalismo passado, naquele tempo. O cinema, a literatura, o teatro, a música, a escultura alcançam patamares universais de reconhecimento, enquanto tecnologia e mercado criam melhores condições de produção para artistas e intelectuais; ainda que solapada pela indústria de massa, pródiga em produzir lixo: revistas que vão para o quarto de entulhos, uma vez lidas; discos que ficam empoeirando nas estantes, uma vez ouvidos; rádios que se desliga quando sua arenga repetitiva nos cansa os ouvidos.
Com esta aptidão e competência, nos dias de hoje o Sr. Hobsbawn não teria dificuldades para enfrentar a pandemia de coronavírus, já que pouco saía de casa, tinha o hábito de lavar seguidamente as mãos, e se ocupava com seus com seus livros e com seus discos de jazz – de que era aficionado, tendo escrito a melhor história social do jazz de que se tem conhecimento.
o Sr. Hobsbawn não teria dificuldades para enfrentar a pandemia de coronavírus, já que pouco saía de casa, tinha o hábito de lavar seguidamente as mãos, e se ocupava com seus com seus livros e com seus discos de jazz – de que era aficionado, tendo escrito a melhor história social do jazz de que se tem conhecimento.
O acaso fez com que que tia Dadá lesse a História Social do Jazz, de Eric Hobsbawn e que ficasse impressionada com o conhecimento de um velho judeu sobre a vida dos músicos negros do Harlem, com seus vícios e paixões. Tudo o que diz respeito aos EEU, que sejam os negros, tantas vezes violentados, lhe interessa; e o livro lhe caiu nas mãos. Quando lhe disse que o autor era um membro fiel do Partido Comunista da Inglaterra, ela ainda mais se admirou. Mas não perdeu a pose.
Tia Dadá tinha um princípio que primo Levi assimilou já pia batismal, em Boston onde nasceu, e que ainda hoje, quando o comunismo não é mais possível, o pratica: os comunistas não são confiáveis nem para se tomar um café no Apolo.
Resta-me, agora, aproveitar a pandemia para convencer tia Dadá a ler a autobiografia do Sr. Hobsbawn Tempos Interessantes, onde recolhi a maior parte destas notícias; porque pelejar com primo Levi, mais gringo que brasileiro, para que leia um livro qualquer, aproveitando este isolamento que não passa, seria pura perda de tempo que não mais tenho.
* É barbacenense e professor-doutor de literatura da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).