Najla Passos
Da Editoria
Saudade é uma das palavras mais emblemáticas do Português. Cercada de mitos e de mistérios, desafia tanto a poesia quanto a ciência. Congrega sentimentos e sensações tão específicos que a tornam difícil de ser explicada, de ser traduzida. Mas não há um só falante da língua portuguesa que nunca a tenha experimentado.
Saudade de alguém, de alguma coisa, de um tempo passado, de um determinado estado de espírito. Saudade que dói na alma, que é melancólica. Mas também saudade que se traduz em uma espécie de nostalgia boa, que conforta o espírito. Saudade, mesmo no singular, são muitas. E em São João del-Rei e Tiradentes, saudade também é polêmica.
Saudade na paisagem urbana
Tudo começou em setembro de 2018, às vésperas da eleição mais polarizada da história recente do país. De uma hora para a outra, para onde quer que você olhasse, havia uma ‘saudade’ estampada na paisagem urbana de São João del-Rei. Logo, na de Tiradentes também.
O assunto rendeu polêmica nas redes sociais, nos veículos de imprensa da cidade. Alguns viam poesia na intervenção. Outros, um desrespeito ao patrimônio histórico da cidade turística.
A Polícia começou então uma verdadeira caçada ao autor das pichações. Com o auxílio de câmeras de segurança particulares, logo conseguiu várias imagens do procurado. Faltava dar nome e registro de identidade ao jovem que aparecia nos vídeos.
Isso aconteceu na madrugada do domingo em que seriam realizadas as eleições presidenciais, quando o clima estava mais pesado do nunca. Vicente (nome fictício), 20 anos à época, foi preso em flagrante com uma lata de spray na mão e outras três na mochila, pichando ‘saudade’.
“Eu acredito que tudo que é feito na rua é um ato político. Seja grafite, malabarismo no farol, música, teatro, pixo, lambe-lambe”.
O ‘pixo’ como válvula de escape
Natural da zona rural de Pindamonhangaba (SP), Vicente deixou família e amigos quando ingressou como estudante na UFSJ. Já estava longe de casa há seis meses quando, em um domingo, sozinho em casa, decidiu que precisava dividir com o mundo a saudade que sentia.
Com uma lata de spray laranja, fez seu primeiro ‘pixo’, como se fala na gíria das ruas, em um muro do bairro Matozinhos. E pichou outro. E outro. “Naquela noite gastei a lata toda. E quando voltei pra casa, me senti muito melhor”, afirmou.
Ele repetiu o ritual nas noites seguintes, em praticamente todos os bairros de São João del-Rei. “Na primeira vez, foi uma coisa só minha, pra dar vazão ao que eu estava sentindo. Depois disso, o sentido ampliou. Eu fazia para as pessoas se identificarem. E também para a cidade ter uma válvula estética. Uma forma de provocar a cidade, porque a pichação tem essa capacidade”, justificou.
O mês passou e Vicente não se deu conta de que os ânimos estavam cada vez mais acirrados devido à campanha política. E mesmo na véspera da eleição, quando havia um efetivo recorde de policiais nas ruas, saiu para pichar.
Era pouco mais de meia-noite quando foi pego. “Fiz três latas e, no final, tinha a metade da quarta. Fiz mais um no Dom Bosco e não quis voltar pra casa com o restinho de tinta. Então, eu fiz o que seria o último da noite. Na rua perto da Eletrobraga, onde tem um depósito de água. Era um muro de esquina quase sem nenhuma pintura, meio abandonado”, recordou.
“Na primeira vez, foi uma coisa só minha, pra dar vazão ao que eu estava sentindo. Depois disso, o sentido ampliou. Eu fazia para as pessoas se identificarem. E também para a cidade ter uma válvula estética. Uma forma de provocar a cidade, porque a pichação tem essa capacidade”
A serviço de qual partido?
“Deita no chão e mãos na cabeça”, disse um homem vestido com calça jeans, bota e capacete, que chegou numa Honda Bis 125. Vicente obedeceu. “O homem estava nervoso. Gritava, dizia que era policial e que, se eu não obedecesse, iria atirar em mim”, lembra-se.
O policial chamou reforços. Seus colegas chegaram e pintaram as mãos de Vicente com a lata de tinta vermelha. Na delegacia, o apresentaram aos colegas como o “Saudade”. Houve comemoração. Vicente não fazia ideia, mas vinha sendo procurado por todo o efetivo.
Na Delegacia, há um banco de concreto com uma barra de ferro pra prender a algema. “Lá eu passei a madrugada toda. Fizeram meu boletim de ocorrência, tiravam várias fotos. Todos perguntavam o motivo, eu dizia que era questão pessoal, que eu estava com saudade, e eles ficavam mais bravos”, relata Vicente.
Segundo ele, como o delegado só voltaria na manhã do dia seguinte, foi interrogado pelos policiais civis de plantão, que queriam saber a serviço de qual partido ele havia feito as pichações. “Eles tinham várias fotos minhas fazendo, de câmeras de segurança, e fotos do ‘saudade’ também. Me mostram umas 20 e 30 fotos. E eu assumi todas”, afirma.
Serviços comunitários
Pouco mais de um mês depois, no dia 28 de novembro, foi realizada a audiência judicial para fixação da medida punitiva. Como era réu primário, Vicente foi condenado a pagamento de multa ou prestação de serviços comunitários. “A multa era meio cara, mais de R$ 500. Então, optei pelos serviços comunitários, justifica.
O estudante foi encaminhado para uma escola da rede pública. Teve que trabalhar 8 horas semanais. Não pode viajar nas férias escolares. Mas conseguiu encontrar um outro jeito de aplacar a saudade e se conectar com São João del-Rei.
Segundo ele, na escola, o deixaram optar entre trabalhar na secretaria, na biblioteca ou na jardinagem. Suas raízes rurais falaram mais alto. “Trabalhar na terra, passar as férias na cidade, sem ter que correr para as aulas, me fez me ambientar mais de São João del-Rei”, conta.
“Uma pessoa que sai do subúrbio em direção ao centro e coloca seu nome lá faz um grande ato político. Essa pessoa contraria e compete com grandes empresas que também utilizam a cidade pra colocar seu nome lá, com outdoor, banner, fachada etc”
O ‘pixo’ como ato político
Vicente começou a pichar quando ainda estava no Ensino Médio, na zona rural de São Paulo. E encontrou na atividade uma forma de lidar com o mundo e com seus sentimentos, seus conflitos adolescentes. “Pra mim, o ‘pixo’ é o que há de mais autêntico, isso desde a arte até o campo da comunicação. ‘Pixo’ é comunicação né? É a comunicação dos marginalizados”, ressalta.
O estudante, que se considerava uma pessoa pouco politizada até a prisão, mudou sua visão de mundo após a experiência. “Acho que tudo isso, de certa forma, me fez ficar mais ativista sim. Me tornou mais consciente sobre a responsa e o risco de sair na madruga pra colocar seu nome na cidade. Não sou vinculado e nem aliado de algum partido. Mas é claro que sou antifascista. Sou contra Bolsonaro e seu discurso”, ressalta.
Para o Vicente de hoje, pichação é sim um ato político: “Eu acredito que tudo que é feito na rua é um ato político. Seja grafite, malabarismo no farol, música, teatro, pixo, lambe-lambe”.
E, conforme ele, é também uma forma revolucionária de apropriação do espaço urbano. “Uma pessoa que sai do subúrbio em direção ao centro e coloca seu nome lá faz um grande ato político. Essa pessoa contraria e compete com grandes empresas que também utilizam a cidade pra colocar seu nome lá, com outdoor, banner, fachada etc. É um ato de apropriação e ocupação do meio urbano que garante reconhecimento social entre os camaradas. É como se corresse pelos suportes da cidade um turbilhão de ideias e palavras”, explica.
O estudante se incomoda com a visão daqueles que vêm a pichação como lixo, como sujeira. E critica a lei que enquadra a prática como crime ambiental (Artigo 65 da Lei 9.605/98). “Crime ambiental é o que a Vale e a Samarco fazem”, denuncia.
Do spray às redes sociais
Depois de ser preso e de acertar contas com a Justiça, Vicente abandonou as latas de spray e partiu para as redes sociais. Hoje, desenvolve no Instagram o projeto Saudade na Cidade, que registra fotografias de grafites com a palavra que marcou sua vida. Confira em @saudadenacidade.