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TREM DE MINAS: QUEM OUVIU O APITO DA MARIA FUMAÇA NO CAMPUS DA UFSJ?

A Maria Fumaça cortando o local que hoje abriga o campus CTAN, da UFSJ. Foto: Les Tindall, 1976.

Najla Passos
Notícias Gerais

Muitos estudantes e servidores da UFSJ que reclamam da precariedade do transporte rodoviário que serve ao Campus Tancredo Neves (CTAN), em São João del-Rei, talvez não façam ideia, mas o local já foi rota do mais simpático e famoso trem de passageiros de Minas Gerais: a Maria Fumaça.

Os trilhos da Estrada de Ferro Minas do Oeste (EFOM), no trecho popularizado como “Linha do Sertão”, passavam rente ao campo de futebol, como mostra a fotografia acima, uma das preferidas do são-joanense Gustavo Zenquini Teixeira, 23 anos, que, apesar de nunca ter cursado uma universidade, é um verdadeiro expert em pesquisa da ferrovia carinhosamente apelidada de “bitolinha”, pela curta distância entre seus trilhos.

Técnico em Mecânica Industrial formado pelo Senai, trabalha 44 horas por semana como estoquista da Ophicina Bike Shop, emprego do qual muito se orgulha. “Já fui atendente e agora sou estoquista”, afirma. E seus momentos de folga, ele investe na preservação da memória da linha de ferro.

De estação em estação, de ferroviário em ferroviário, o jovem tímido e obstinado mantém vivo o legado desta verdadeira paixão regional, além de compor uma nova história junto a ela. Com uma página no Facebook e um projeto no Youtube, agora ele sonha com uma nova aventura: lançar um livro sobre as histórias da EFOM.

Memórias de infância

Como acontece com muitos mineiros deste cantinho das Gerais, Gustavo mistura as melhores memórias da sua infância ao sons do apitos dos trens. Eram nos domingos passados na casa dos avós, localizada bem na beira da ferrovia, que ele ouvia as histórias que mais aguçavam sua imaginação infantil. E onde sonhava ser o maquinista que faria o apito do trem soar.

O avô Florêncio Zenquini contava como, na década de 1930, deixara Carangola, a bordo do trem de ferro, para chegar à São João del-Rei e se apresentar ao Exército Brasileiro. A avó, Marli Maria, era uma são-joanense que viveu toda a sua vida às margens da linha, numa casa que ficava próxima à Estação de Mestre Ventura, no Caburu, inaugurada em 1931 e hoje já demolida.

Mas o ponto alto daqueles domingos eram os passeios à Estação de São João del-Rei. “A gente chegava lá por volta das 15h30, a tempo de ver a Maria Fumaça descer para Tiradentes, e ficava lá até 17h30, quando ela subia novamente. Às vezes ficava mais tempo, até quase fechar a estação, e eu ainda aproveitava o resto do domingo na casa dos meus avós”, lembra ele.

Gustavo Zenquini Teixeira, na Ponte do Inferno, que corta o Rio das Mortes, na divisa de Bom Sucesso e Ibituruna. Foto: Arquivo pessoal.

Do trenzinho de brinquedo ao computador

Em 2011, quando o Facebook inventado por Mark Zuckerberg foi lançado no Brasil, Gustavo já havia abandonado os trenzinhos de brinquedo com circuito oval que o acompanharam na infância. O ano entraria para a história da vida do então adolescente como aquele em que ganhara o objeto do desejo de todos os meninos do seu tempo: o computador.

A ferramenta mágica o conectou com o mundo, mas possibilitou que ficasse ainda mais próximo da sua bitolinha. No Facebook de Zuckerberg, Gustavo foi conhecendo mais e mais sobre a memória ferroviária local. Se inscreveu em grupos históricos e foi acumulando as imagens e histórias que encontrava neles. Criou um grande arquivo de fotos e, no ano seguinte, lançou a página Maria Fumaça de SJDR.

“Naquela época, havia muita concorrência entre as páginas que tratavam da memória ferroviária em São João del-Rei. As pessoas estavam começando a digitalizar suas fotos antigas para colocar na rede. Então, havia uma verdadeira corrida atrás delas”, lembra ele, contando com orgulho que sua página chegou a ser a segunda mais curtida, com um acervo acumulado de mais de 700 fotos.

Segundo Gustavo, foi nesta época também que explodiram os clubinhos de memória ferroviária que, nos finais de semana, percorriam os roteiros dos antigos trilhos para fotografar estações, caixas d´água e lugarejos. “Nós também viajávamos para as estações da região, tentando registrar os primeiros cliques e ver em que condições elas andavam”, lembra-se.

Com todo este conteúdo, a página crescia rapidamente. E começou a despertar inveja. Até que, no início de 2013, ele teve sua página hackeada por uma pessoa que não se conformava em não ser aceita para administrá-la. “A pessoa trocou a foto, assumiu minha identidade e passou a interagir como se fosse eu. Foi um baque bem forte. Então, eu denunciei o ocorrido para ao Facebook e consegui derrubar a página, mas perdi todo aquele acervo. Algumas fotos, nunca mais recuperei”, lamenta.

O recomeço

O trauma não o impediu de seguir o sonho. Em junho de 2013, ele lançava a página EFOM, que administra até hoje. “A página não possui fins lucrativos, não tem nenhuma ligação com a empresa que administra o Complexo Ferroviário de São João del-Rei, a VLI. O único objetivo mesmo é manter viva a memória ferroviária da ferrovia da região”, afirma.

“Sempre tem muita gente que interage com a página, os turistas que chegam à cidade, o pessoal mais novo que quer conhecer as estações da região e até os artistas que pedem fotos para fazer pinturas”, afirma. E com a ajuda de todos eles, Gustavo vai aprimorando suas pesquisas e seu acervo. “Os internautas enviam fotos, eu vou para o trecho fotografar, e assim a página vai sendo alimentada”, explica.

Dentre os muitos amigos que já fez por meio da página, ele destaca os ferroviários de toda a região, que curtem as suas publicações e dividem memórias. E também os gringos que passeavam pela bitolinha, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, para ver o funcionamento de uma ferrovia típica do século 19, que em outros países não existe mais.

“Eram principalmente americanos, alemães e ingleses que fretavam trens, alguns deles com vagões de luxo, para conhecer a EFOM em grupos de amigos. E eles fotografavam as locomotivas, os vagões, a ferrovia e os ferroviários, compondo um registro fantástico daqueles tempos. E ainda hoje, 40 anos depois, aparecem na página para rememorar a aventura”, conta.

“Eram principalmente americanos, alemães e ingleses que fretavam trens, alguns deles com vagões de luxo, para conhecer a EFOM em grupos de amigos. E eles fotografavam as locomotivas, os vagões, a ferroviA e os ferroviários, compondo um registro fantástico daqueles tempos. E ainda hoje, 40 anos depois, aparecem na página para rememorar a aventura”

A bordo e na trilha da Maria Fumaça

O passeio de São João del-Rei à Tiradentes, na Maria Fumaça, é a única experiência do jovem a bordo de um trem turístico. Como sua página no Facebook não tem fins lucrativos, é o próprio Gustavo, com seu salário de estoquista, que banca suas viagens para conhecer a ferrovia.

“Eu faço economia, corto uma coisa aqui e outra ali. Às vezes, pego carona na moto de um colega, em outras uso o carro dos meus pais, a minha bicicleta ou vou até mesmo a pé. Já deixei muitas vezes de ir à praia e outros roteiros mais famosos para visitar as estações da região”, conta.

Dentre as memórias, destaca a visita à Antônio Carlos, o marco zero da EFOM, desativada desde 1984. “Em Antônio Carlos, eu já fui duas vezes. Eu vi a locomotiva, o carro dormitório… a locomotiva está um pouco depredada, do ponto de vista técnico, mas muito melhor do que em outros lugares. A estação é espetacular, tem uma caixa d´água gigante, top mesmo”, afirma.

Outra viagem memorável, para ele, foi à ida à Aureliano Mourão, a estação encravada no município de Bom Sucesso que foi o ponto final do ramal da EFOM, entre 1960 e 1984, que tinha Antônio Carlos como marco zero. Construída em 1887, abrigava uma bifurcação, com uma linha chegando a Lavras, a partir de 1888, e a principal seguindo para o norte e atingindo finalmente Barra do Paraopeba, em 1894.

Em Aureliano Mourão, o jovem tímido se superou e entrevistou dois ferroviários para um novo projeto que estava iniciando: o Vestígio 84, que visa à preservação das histórias e memórias da ferrovia por meio de vídeos com relatos dos ferroviários. O projeto, segundo ele, está suspenso devido à pandemia da Covid-19, mas retornará à ativa tão logo seja seguro.

“Se for pra pegar a Estrada de Ferro Oeste de Minas, eu já rodei mais de 200 Km. Já vim desde Antônio Carlos, passando por Barroso, por Tiradentes. Então, eu conheço ali praticamente tudo. E daqui de São João, já fui até Aureliano Mourão, que complementa os 202 Km que a ferrovia tinha até 1984, que era o trem comercial”, orgulha-se.

“Se for pra pegar a Estrada de Ferro Oeste de Minas, eu já rodei mais de 200 Km. Já vim desde Antônio Carlos, passando por Barroso, por Tiradentes. Então, eu conheço ali praticamente tudo. E daqui de São João, já fui até Aureliano Mourão, que complementa os 202 Km que a ferrovia tinha até 1984, que era o trem comercial”

Outra lembrança que guarda com carinho é a da viagem a Lavras (MG) e a Ribeirão Vermelho (MG), com um grupo de amigos. “Em Lavras, ficamos na estação, vimos os trens de carga passarem, conhecemos a oficina da EFOM e depois seguimos para Ribeirão Vermelho. Nós passamos pelo Engenheiro Bering, um pátio com circulação de manobra e oficinas de locomotivas, à diesel e elétricas. Foi bem marcante este dia. Em Ribeirão, fica a maior rotunda da América Latina, que infelizmente está abandonada, e também há uma ponte rodoferroviária”, relembra.

Com o maquinista Ilair Santana, ainda na adolescência. Foto: Arquivo pessoal, 2009

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