Início Opinião Artigos ARTIGO: UMA ROTUNDA ‘PRA TURISTA VER’?

ARTIGO: UMA ROTUNDA ‘PRA TURISTA VER’?

Imagem: Montagem feita por Lucas Maranhão com fotos de Gustavo Zenquini

Tulio de Oliveira Tortoriello *

A rotunda, construção circular que abriga locomotivas, pertencente ao complexo ferroviário de São João del-Rei, já foi palco de eventos culturais variados, dentro da programação do Inverno Cultural da Universidade Federal de São João del-Rei, misturando, por exemplo, espetáculos de dança contemporânea, shows de samba de raiz e apresentações de bandas de rock, palestras sobre literatura, exposições de fotografias e espetáculos teatrais, assistidos por um público diversificado. 

Hoje, tais eventos são apenas boas lembranças na memória de são-joanenses e turistas. Depois de tantos acontecimentos importantes para a vida cultural são-joanense, realizados nesse espaço, é difícil imaginar que esse monumento passe a ser resguardado, em pleno século XXI, apenas para ser um museu de locomotivas ou tão somente para preservar a memória ferroviária.

A coordenação do Inverno Cultural da UFSJ, festival que teve início no ano de 1988, começou a solicitar e utilizar cada vez mais os espaços do complexo em variadas atividades culturais. Mas, depois de alguns anos, o Iphan passou a restringir e dificultar a realização de tais atividades, notadamente na rotunda. Vale dizer que o complexo ferroviário de São João del-Rei foi objeto de tombamento federal em 1989 e passou, a partir de então, a ficar sob proteção daquele órgão. 

Como alegações para refutar o uso do monumento, o Iphan afirmou, através de ofício à UFSJ, de 01 de junho de 2009, que tais acontecimentos não seriam mais possíveis “devido às características do evento e tendo em vista que a realização de evento semelhante no passado ter causado danos nos espaços”. Assim, de maneira bastante vaga, através de um documento encaminhado à coordenação do Inverno Cultural, o Iphan decretava, há mais de dez anos, o fim do uso da rotunda para eventos culturais em benefício da comunidade local. 

Parece claro que outros aspectos foram levados em conta pelo Iphan para a não concessão do espaço da rotunda para o Inverno Cultural. A segurança e temor de depredação do local, por exemplo, deve ter sido uma preocupação. Talvez por isso, mencionou-se, no documento emitido pelo órgão, “a realização de evento semelhante no passado ter causado danos nos espaços”. Mas não seria o caso de se exigir da coordenação do festival, pertencente a uma universidade pública, um projeto de proteção e segurança eficaz para o local, a ser fiscalizado pelo órgão durante a realização do evento, e não simplesmente negar o uso do mesmo? 

Quando tratamos das questões dos usos sociais do patrimônio, teoria proposta pelo antropólogo Néstor Canclini, enfatizamos que o autor destaca o caráter processual do patrimônio, ele não o enxerga como um conjunto estável e intocável de monumentos. Canclini também considera muito importantes os produtos culturais das classes populares. Ele afirma que “os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais representativos da história local e mais adequados às necessidades presentes do grupo que os fabrica. Constituem, nesse sentido, seu patrimônio próprio.”

Uma interação entre os produtos populares e os monumentos do complexo ferroviário são-joanense vinha acontecendo dentro da programação do Inverno Cultural da UFSJ durante vários anos, mas foi interrompida pela negativa do Iphan de permitir que os eventos do festival continuassem a ter lugar na rotunda. O espaço passou a ser somente um ponto turístico, onde é possível apenas a visitação às antigas locomotivas de origem americana expostas no local e onde os turistas acabam usufruindo mais do espaço do que os habitantes da cidade. 

O órgão federal responsável pelo patrimônio histórico e artístico brasileiro, por razões que aqui não são possíveis de serem percebidas de maneira clara, voltou a preservar tal monumento de maneira, no mínimo, tradicional, sem levar em conta a mobilidade, a heterogeneidade e a proximidade entre o culto e o popular, características tão marcantes nas manifestações culturais da contemporaneidade. Ao refletir sobre esse caso, consideramos ser possível pensar em maneiras razoáveis e responsáveis de se promover essa integração, que respeitem as contradições entre as partes. 

À medida que o tempo passa, os significados do patrimônio cultural vão se transformando, o patrimônio vai se moldando às mudanças das sociedades às quais pertence. É importante que os agentes preservacionistas atentem a esses fatos e não percam de vista, principalmente, o caráter humano e social da memória. Voltar a aproximar um monumento imponente, situado no centro da cidade, sob responsabilidade do poder público, como é o caso da rotunda, de toda a comunidade da cidade, através da realização de atividades diversas e “irreverentes”, seria uma prática condizente com os dias atuais, além de tornar esse monumento instrumento de promoção da cultura, da igualdade e da convivência social.

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Letras (linha de pesquisa Literatura e Memória Cultural) pela Universidade Federal de São João del-Rei, com dissertação defendida sobre “Usos sociais do patrimônio histórico e cultural de São João del-Rei”, ex-membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de São João del-Rei, de 2003 a 2009.

Os artigos de opinião e colunas publicados não refletem necessariamente a opinião do portal Notícias Gerais.

1 COMENTÁRIO

  1. Muito bom o texto. Exatamente com ideias que integrem e não de segregação. Um patrimônio que pode fazer a diferença na inclusão cultural de todas as esferas sociais do nosso município.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui