Rodrigo Chávez Penha *
Entre as várias medidas tomadas para reduzir o adoecimento e as mortes pela epidemia de Covid-19, causada pelo novo tipo de coronavírus, o SARS-CoV-2, tem se destacado a discussão sobre a importância do isolamento social. Como todas as medidas em saúde coletiva, a prescrição de uma medida tem efeitos bons e ruins. A discussão atual tem abordado os efeitos de interromper a circulação e a aglomeração de pessoas, que vão desde a preservação da saúde destas ao risco de empobrecimento e, consequentemente, as consequências deletérias no futuro.
Duas formas são propostas, com efeitos diferentes em escala e tipo de pessoas a ficarem recolhidas em suas casas: o isolamento horizontal, em que toda a população deve permanecer em casa, e o isolamento vertical, quando apenas grupos de pessoas com características que aumentem o risco de complicações graves ou morte devem ficar recolhidas. Como entender cada um e quais as questões colocadas?
O que é quarentena?
O termo quarentena é reconhecido como iniciado e consagrado, historicamente, no ano de 1337 em Ragusa, dominada por Veneza à época, pelo uso de medidas de restrição de entrada por 40 dias para viajantes. Esta medida evitava que as pessoas entrassem nas cidades durante o período em que se considerava que manifestariam sintomas de doenças, evitando assim que trouxessem seus agentes causadores.
Desde antigamente, a quarentena foi aplicada em vários casos de epidemias, como durante a peste negra e o surto de tuberculose e, mais recentemente, por ocasião da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla em inglês, também conhecida como gripe suína, ocorrida em 2002 e 2003).
Quando uma doença altamente infecciosa já está na cidade, outra medida se faz necessária: o isolamento das pessoas, em especial as infectadas ou que transmitam a doença, como forma de evitar sua disseminação, bem como para proteger pessoas mais suscetíveis a adoecer gravemente ou morrer.
Embora prevenir o contágio e proteger os suscetíveis pareça a mesma medida, não são. Vamos pensar em uma doença que afete determinado grupo, como um tipo específico de pneumonia que, para a maioria das pessoas com sistema imune regular, é facilmente curada antes dos sintomas.
Pessoas com sistema imune fragilizado, por genética, tratamentos ou doenças, devem ser isoladas para evitar contrair a doença. Esta medida foca na preservação da vida da pessoa, mas tem outro efeito: evita a utilização de recursos de saúde quando não adoece gravemente, seja se expondo a menos riscos de efeitos colaterais de tratamentos, seja poupando recursos (próprios ou do sistema de saúde usado).
De volta aos tempos atuais
Assim, voltamos para os tempos atuais: epidemia por uma pneumonia nova (Covid-19), causada por um vírus conhecido que passou por mutações naturais (SARS-CoV-2), de acordo com os artigos científicos publicados. Um quadro de gripe que passa de maneira pouco sintomática em muitas pessoas, mas que evolui para uma grave inflamação do sistema respiratório, com posterior repercussão em todos os sistemas do corpo humano, em uma fração da população que pode oscilar entre 10% e 20% (dependendo dos dados publicados), levando alguns à morte (aproximadamente de 2% a 5% na maioria dos países).
Iniciada na China, a epidemia rapidamente se alastrou pela Europa e, progressivamente, por diversos outros países, sendo declarada uma pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Em suma: um agente altamente transmissível, com um quadro leve que pode não ser reconhecido, mas que pode rapidamente exigir muitos recursos de saúde e matar suscetíveis por ação direta ou aqueles que não conseguirem auxílio para outras condições que levem à morte.
Assim, chegamos à decisão dos gestores de saúde e nossos líderes eleitos para o poder executivo: já que a doença chegou e se espalha rápido, o que fazer? Evitar o contato entre todas as pessoas e, assim, a disseminação do vírus ou evitar que apenas os mais suscetíveis fiquem expostos?
Isolamento vertical
“Para funcionar, depende de um sistema de forte monitoramento, onde as pessoas doentes são rapidamente identificadas e retiradas do convívio com os demais, bem como a presença de um sistema de suporte capaz de lidar com a totalidade de pessoas a serem atendidas ou hospitalizadas com diagnóstico de Covid-19”
O isolamento vertical consiste em isolar as pessoas mais suscetíveis de modo a evitar mortes. Seria restringir a circulação de idosos e de pessoas com doenças crônicas, em especial pulmonares, cardiovasculares e diabetes, sem esquecer de grupos que habitualmente são protegidos como pessoas com sistema imune frágil, gestantes, puérperas, lactantes e crianças pequenas.
Para funcionar, depende de um sistema de forte monitoramento, onde as pessoas doentes são rapidamente identificadas e retiradas do convívio com os demais, bem como a presença de um sistema de suporte capaz de lidar com a totalidade de pessoas a serem atendidas ou hospitalizadas com diagnóstico de Covid-19.
Mesmo com tudo funcionando, mortes são esperadas, especialmente no grupo de alto risco, pela sabida exposição a que estariam submetidos, pois teriam que continuar a ter contato com o mundo externo para viver, precisando desde alimentos e roupas a afeto ou auxílio para executar suas atividades habituais.
Dados da realidade brasileira
Dados da realidade se tornam importantes. Os leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) são reconhecidos como insuficientes e mal distribuídos pelo país, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), em análise sobre a situação em 2018 e alguns artigos publicados recentemente.
Os equipamentos de proteção individual (EPI) não foram adquiridos para sustentar uma epidemia e foram largamente usados em países acometidos antes do Brasil, com redução da disponibilidade e aumento excessivo de preços. Os reagentes e materiais necessários para os testes (kits, como muitos chamam) mais rápidos para confirmar a infecção pelo SARS-COV-2 também estão pouco disponíveis, tanto por serem novos no mercado quanto pela alta demanda.
Mais além, todos esses recursos mencionados estão disponíveis em parte na rede pública, para todos, e em parte na rede privada, onde apenas aqueles que podem pagar por seus serviços terão acesso (ou que pagam planos de saúde ou proteções equivalentes).
Isolamento horizontal
“Essa alternativa é apresentada como a forma mais eficaz para achatar a curva, cuja altura é determinada pelo número de pessoas doentes ao mesmo tempo. Se a curva é muito alta, muitas pessoas estão precisando de tratamento e os recursos acabam rapidamente (como aparelhos de ventilação pulmonar, conhecidos como respiradores).”
Estas análises para a situação brasileira nos impõem considerar o isolamento horizontal, ou seja, de todos. Seus efeitos são positivos por reduzir as aglomerações e trocas entre as pessoas, pois o SARS-COV-2 pode tanto ficar em superfícies por muitas horas como chegar por gotículas no ar emitidas por uma pessoa próxima que espirra ou tosse.
Essa alternativa é apresentada como a forma mais eficaz para achatar a curva, cuja altura é determinada pelo número de pessoas doentes ao mesmo tempo. Se a curva é muito alta, muitas pessoas estão precisando de tratamento e os recursos acabam rapidamente (como aparelhos de ventilação pulmonar, conhecidos como respiradores).
Experiências fracassadas
Já em relação ao isolamento vertical, ele foi adotado em locais como Milão, na Itália, e na Inglaterra. Em ambos os casos, em virtude do aumento do número de doentes e mortes em um curto intervalo de tempo, houve a mudança da recomendação para o isolamento horizontal”
Já em relação ao isolamento vertical, ele foi adotado em locais como Milão, na Itália, e na Inglaterra. Em ambos os casos, em virtude do aumento do número de doentes e mortes em um curto intervalo de tempo, houve a mudança da recomendação para o isolamento horizontal. Tanto a Itália como a Inglaterra têm distribuição da população de risco muito diferente da brasileira, mas devemos alertar que seus sistemas de suporte aos doentes apresentavam indicadores mais próximos dos recomendados pela OMS do que o Brasil.
Dadas as situações social e da saúde brasileiras, bem como o desenrolar da epidemia em países da Ásia e da Europa, dificilmente encontramos quem defenda o isolamento vertical no Brasil. Há aqueles que ressaltam uma possível amarga conta futura, pela estagnação econômica, e aqueles que dependem de qualquer atividade econômica diária para sobreviver, talvez por opção ou estilo de vida, mas também devido à ausência do suporte dos sistemas de seguridade social adequados às necessidades das pessoas.
Muitos já afirmam que as alterações provocadas por essa epidemia deixarão profundas cicatrizes em nosso modo de entender a fragilidade da vida humana, bem como a nossa existência em coletivo. O que se pode esperar desse entendimento é que as instituições que devem cuidar de todos, o Estado, cumpram o seu papel.
Neste momento em que a incerteza e o medo parecem ser maiores que a razão, talvez seja hora de olhar com amor para os que estão à nossa volta e buscar saídas para um futuro desconhecido, quando for seguro para todos, e enfrentar, como fizemos em momentos mais sombrios da vida do nosso país, todos os obstáculos que se coloquem à nossa felicidade coletiva, sem que ninguém precise ficar para trás, pobre, doente ou já ausente precocemente.
- É médico de Família e Comunidade, professor do Curso de Medicina da UFSJ. Atualmente, é chefe da Assessoria Especial para o Desenvolvimento da Educação em Saúde da UFSJ. Mestre em Saúde Pública e Meio Ambiente pela Escola Nacional de Saúde Pública e doutorando em Saúde Coletiva pela UFJF. Foi secretário de Saúde de São João del-Rei e diretor do Desenvolvimento da Educação em Saúde no MEC.