Edson Brandão *
Em 2017, a segunda turma da Faculdade de Medicina de Barbacena celebrou suas quatro décadas de formatura com um encontro emocionado e o lançamento de uma revista, com relatos feitos por vários de seus membros, reunidos em uma edição especial com a história da turma pioneira, diplomada em 1977.
Inquietos e verdadeiramente pioneiros em muitas coisas, acadêmicos como Jairo Toledo, Nicolau Esteves, Tulio Vidigal e outros marcaram época promovendo eventos históricos como a palestra do cardiologista Euryclides Zerbini ou shows antológicos como os de Chico Buarque, MPB4, Vinícius e Toquinho.
Só para dar um gostinho dos relatos contidos na Revista 40 – Turma 72-77, costuro aqui alguns trechos da história que escrevi retratando como era o ambiente histórico e cultural de Barbacena nos anos 70, boa parte deles vividos em plena vigência do AI-5.
Quando a turma composta por 64 moças e rapazes, então acadêmicos de Medicina chegou a Barbacena, em 1972, a cidade e o Brasil eram muito diferentes… O País vivia sob o comando de um general, todos os meios de comunicação eram censurados, em especial a televisão. Mas mesmo assim um televisor colorido era o objeto do desejo de nove entre dez famílias brasileiras.
A novela Selva de Pedra batia recordes de audiência no Canal 4. Enquanto isso, carrões como Galaxy e Opala embalavam o sonho da moçada, afinal todos queriam ser como Emerson Fitipaldi, o primeiro piloto brasileiro campeão mundial de Fórmula 1. A Copa de 70, ainda que conquistada por um supertime, tinha um certo amargor típico daqueles tempos de pouca liberdade.
Barbacena tinha então 60 mil habitantes, respirava tradicionalismo e era dividida pelo muro imaginário de uma longa disputa política entre duas famílias. Não bastasse isso, a “Cidade das Rosas” ainda era assombrada por um hospício superlotado e que vendia os cadáveres de suas vítimas para estudo de anatomia humana.
Longe de ser alienada, a turma da Medicina, no entanto não se imaginava como uma força subversiva atuante e apenas lutava com as armas com que dispunha: a juventude e muita disposição para fazer coisas inimagináveis.
Chico e a Epcar
Em 1973, em pleno governo do General Emílio Garrastazu Médici, já era comum que canções questionadoras ao regime militar fossem proibidas nas rádios e nas apresentações ao vivo. Foi o que aconteceu com o cantor e compositor Chico Buarque de Holanda, em sua turnê no circuito universitário, com a canção “Apesar de você”.
Quando a turma da Medicina decidiu trazer o show de Chico a Barbacena, acompanhado do grupo MPB 4, foi advertida com antecedência que tal música não poderia ser cantada ao vivo. Na apresentação anterior, em Juiz de Fora, a proibição fora respeitada e em Barbacena, o Ginásio Silvio Raso poderia ser o cenário da desobediência civil do Chico.
“Tudo certo para o show, mas quando os músicos chegaram ao ginásio, já tinha uma fileira de soldados da Polícia da Aeronáutica perfilada, todos de mãos dadas, para acompanhar toda a apresentação e eventualmente entrar em cena”, relata Jairo Toledo, um dos produtores do show.
“Depois de uma garrafa quase inteira de Passport e o orgulho um pouco ferido, Chico não cantou a música censurada, fez um ótimo show para um ginásio lotado e no dia seguinte, ainda jogou futebol conosco”, relembra.
No jogo de futsal entre os músicos e os estudantes, os membros da chamada “República do Urubu” se uniram à “República dos Gaviões”, formando o combinado batizado de “Voadores”. Como adversários em quadra, ninguém menos do que o próprio Chico Buarque e o grupo MPB 4.
Tidos como imbatíveis na época, os boleiros da Medicina não levaram em conta a fama dos adversários. Placar final: 5×3 para a Medicina. Logo após o jogo, Chico e MPB 4 seguiram sua turnê universitária e os “Voadores” foram amargar uma prova de Anatomia…Isso aconteceu no dia 18 de abril de 1973.
Poetinha e Toquinho
Em 1976, eles já estavam no quinto ano, quando o Diretório Acadêmico da Medicina decidiu trazer o show de Vinícius de Moraes e Toquinho, também no velho em bom Silvio Raso. Sem a pressão do ambiente político e na informalidade típica do “Poetinha”, que trocou o fino Hotel Grogotó pelo Palace, Vinicius ao lado do violonista Toquinho protagonizaram mais um momento histórico para a cultura da cidade, com a marca da inquietude da turma da Medicina.
Para quem testemunhou a apresentação de Vinícius e acompanhou os artistas no pós-show, ficaram as lembranças da alma boêmia reinante que se prolongou numa noitada no Gino´s il Candelabro, com incontáveis doses de whisky e uma canja servida pela banda composta pelo baterista Mutinho, o baixista Azeitona e o pianista Sion.
“Foi uma noite memorável. Era maravilhoso ver o Vinícius ali tão à vontade, um clima de tamanha informal e despreocupação que ninguém se lembrou de fazer sequer uma foto”, recorda, com uma ponta de arrependimento, um dos produtores do show, Jairo Toledo.
- Membro efetivo da Academia Barbacenense de Letras e membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São João Del-Rei.