Douglas Caputo *
Você para e pensa: “será que o repertório de sandices do Governo Federal é inesgotável?” Se for, a estratégia já deu, não cola mais. Mesmo porque, até o cômico cansa, perde a graça. Aliás, cessa o caráter hilário e ganha fisionomia o discurso grotesco.
Contudo, enquanto a grande lona cobrir Brasília, pode esperar, tem espetáculo. Na última sexta (15), quem se apresentou foi o ministro da Educação, Abraham Weintraub. Na CNN dos chiliques de Regina do Arte, o gestor também meteu os pés pelas mãos. Ao falar sobre um possível adiamento do Enem, Weintraub reforçou o conflito de classes e expôs uma visão que não considera a desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres do Brasil.
“O Enem não é feito para corrigir injustiça social, [mas] para selecionar as melhores pessoas, mais capacitadas para serem os futuros médicos, os futuros engenheiros, os futuros enfermeiros”, sentenciou o ministro.
Ora, a defesa de uma sociedade meritocrática, tão cara ao bolsonarismo, reflete e refrata o signo da exploração capitalista destacado por Karl Marx quando o sistema econômico ainda estava em sua fase Industrial, no século 18.
A proeminência da burguesia e o surgimento do proletariado ecoam nas palavras de Weintraub, o que corrobora um retrocesso trissecular do Brasil. A propósito, talvez seja muito otimismo falar em retrocesso, já que o país beira o medievo.
Segundo o sociólogo Manuel Castells, na obra “A Sociedade em Rede” (2006), as trocas de big data ditam os rumos da economia global. Desconectado desse “Capitalismo Informacional”, o Brasil – e Weintraub – ainda discutem o acesso à Internet pela população.
“Quem não tem Internet nenhuma, não consegue nem fazer inscrição para o Enem, porque as inscrições do Enem são feitas há muitos anos pela Internet”, ironizou o ministro durante entrevista à CNN.
O argumento de Weintraub desmancha no ar as teses de que o Brasil promoveu a inclusão digital com as redes móveis dos celulares. Não por acaso, a maior parte da população aperta porcas e parafusos ao passo que um ‘nanogrupo’ acaricia teclas e touchs.
Um ministro que capitaneia a pasta da Educação, paradoxalmente, promove a deseducação ao dizer que a suspensão do Enem para uma “minoria” não tem impacto na sociedade.
Pior, Weintraub polariza politicamente o Exame ao argumentar que os “protetores dos mais humildes” representam um movimento de esquerda sem agenda e, por isso mesmo, tomam o Enem como palanque eleitoral.
“‘Todos pela educação das criancinhas bonitas do Brasil’. Eles [ alguns parlamentares] vêm com discurso bonito, mas o que eles estão vendendo é a agenda de interesses de quem banca a política deles [educação privada]”, assevera o ministro.
“Violência simbólica”
A despeito de usos políticos do Enem, segregar quem pode, ao menos, pleitear uma vaga nas universidades brasileiras é uma forma contundente de acentuar a disparidade econômica e cultural entre os brasileiros.
Ao classificar como “minoria” os candidatos que não vão conseguir se inscrever na prova por conta de falta de Internet, Weintraub comete aquilo que sociólogo francês Pierre Bourdieu chama de “Violência Simbólica”.
O conceito se refere a um conjunto de práticas imateriais que tendem a reproduzir e sedimentar o discurso de uma minúscula elite dominante. Por consequência, o ministro promove a inculcação de que a universidade é para todos, mas nem para todos.
Tendo em vista que Weintraub promove um novo tipo de “seleção natural” dos espécimes mais aptos ao sistema planetário do terraplanismo, ele desacredita e minimiza obstáculos que um candidato enfrenta meses antes da maratona de provas.
“Então é falacioso dizer que lá no interior do Agreste, a pessoa não vai poder estudar, não consegue fazer inscrição para o Enem [por causa de falta de Internet]”, afirmou Weintraub durante a entrevista, em tom negacionista.
Não ministro, milhões, em várias regiões do país, não vão conseguir se inscrever. Como acontecia hás uns vintes anos, as universidades federais podem voltar a ser reduto da elite financeira, que lotava os estacionamentos acadêmicos com seus carrões importados.
Nesse jogo de irônica “Perfeição”, cantado por Renato Russo, o Brasil vai celebrar a estupidez do povo, a juventude sem escola, as epidemias, o horror de tudo isso com festa, velório e caixão.
Sinta-se convidado para essa festa, ministro, mas não nos responsabilizamos por eventuais problemas técnicos da rede no ato de confirmação do convite.
*É jornalista, mestre em Letras e professor de redação no curso SOU1000.