João V. Bessa *
A são-joanense Mari P foi criada no bairro Senhor dos Montes, onde cresceu cercada de estímulos artísticos: toda a sua família faz música. Conheceu o movimento hip-hop ainda adolescente, dançando break com seu irmão, em oficinas organizadas pela Associação Movimento Força Jovem. Há cinco anos começou a praticar a escrita, descobriu-se como rapper; e agora lança seu primeiro álbum, “Resista”.
Em suas canções, ela traz as narrativas do cotidiano, a crítica ao sistema, a noção de pertencimento ao seu bairro e o orgulho negro. Mas não apenas disso. Mari P também fala de feminismo e Psicologia Social. Isso porque a artista é também bacharela e mestranda em Psicologia pela UFSJ. Suas canções transmitem os conhecimentos que ela adquiriu.
Foi na universidade, aliás, que ela teve contato com as discussões sobre raça, gênero e classe, principalmente por meio do coletivo de mulheres negras Dandara. “Eu falo sobre a questão racial tendo muito carinho pelas mulheres negras. Falo da importância da gente se olhar com mais respeito”, afirma. A sua trajetória é marcada pelo que tirou de experiências coletivas de pessoas negras auto organizada, voltadas para a ação cultural, intelectual e também política, o que é característica do Hip-Hop como movimento social.
O próprio movimento carrega essa herança da milenar cultura negra africana, como aponta a linguista Ana Lucia Silva Souza (UFBA), autora de “Letramento de reexistência: culturas e identidades no movimento hip-hop”. Em sua tese, ela destaca o papel do Hip-Hop nos processos de letramento, que são as práticas sociais que constroem as produções de subjetividades. O Hip-Hop, então, é uma cultura que combina de forma horizontalizada diversos letramentos, transmitidos de forma oral, verbal e/ou imagética.
O álbum “Resista” é um compilado de todas as canções de Mari P. Colaboraram o DJ Leo Mix Master e os bitmakers Cego Egípcio e Lil Cripz. Além de João Bosco do Violão (seu pai), o MC Jhes Carmo (seu irmão) e a MC Ana F.
Leia abaixo os destaques da entrevista de Mari P para a coluna Vozes Veladas:
Quando foi que você começou a escrever suas poesias?
Foi em 2015, quando eu participava do coletivo Dandara, que oferecemos uma oficina de rima numa escola. Eu pensei em escrever uma rima e levar para a oficina. Escrevi e cantei, as pessoas acharam interessante. Nessa primeira letra, eu falei sobre os elementos e os objetivos do Hip-Hop, do que a gente busca a partir dele. Passou um tempo, e eu me apresentei num evento “Hip-Hop na praça”, da Associação Movimento Força Jovem. Assim, comecei a me apresentar com frequência. Agora, em maio, fazem cinco anos que estou no rap.
O que a universidade trouxe de novo?
Já na academia eu comecei a entender o que era o racismo. Até então, eu achava que era parda e que algumas situações que vivi ocorreram porque eu era pobre. Não passava pela minha cabeça que eu era negra. Por causa do Dandara e da possibilidade de estudar o racismo na universidade, eu comecei a me interessar pelo tema. Ao mesmo tempo, fui estudando mais a fundo outras letras de rap. Então percebi a importância de transmitir aquela informação que foi extremamente importante para mim. Para que eu pudesse perceber que não sou inferior, incompetente e que várias situações que eu achava que eram minha culpa, não eram. Senti que poderia usar o rap como ferramenta para levar informação às pessoas.
Como você articula a psicologia e o rap?
Estou num processo pessoal de entender como articular a psicologia com o Hip-Hop e o feminismo negro. Isso tem a ver com o meu mestrado. Eu estudo o rap e a identidade de rappers negros e negras na psicologia. Com a Psicologia Social, tento entender como o Hip-Hop influenciou na constituição da identidade. Meu foco é o rap as figuras dos/as MCs e DJs. O MC é o griot moderno, cumpre a função significativa de transmitir o conhecimento sobre a nossa história afrobrasileira e o orgulho de ser negro. E o DJ é o herdeiro do tambor ancestral. É uma continuidade da tradição de oralidade que vem da África Ocidental. Essa é a articulação do projeto de mestrado e da minha vida. Podemos usar o rap como ferramenta para transmitir informação e trabalhar o âmbito social, que também é foco da Psicologia Social.
Qual a sua reflexão a respeito dos efeitos psicológicos da pandemia?
Eu tenho percebido uma ansiedade coletiva. Eu sinto que o modo como a gente se organiza socialmente não nos leva a uma reflexão, por exemplo, sobre a morte, a finitude da vida. Estamos sempre correndo, sem tempo para pensar em nós e no que é importante. Me parece que essa situação está trazendo de forma rápida os questionamentos sobre o que é a vida, a morte,o que são as doenças. Por mais que seja um período bem doído de ansiedade, isso tem levado as pessoas a se olharem. A gente não faz isso, estamos sempre olhando para fora. Às vez nem queremos parar para não termos que lidar com algumas questões. Por mais que seja doído, com a possibilidade de morte, vejo aberturas e possibilidades de reflexão. A morte ainda é um tabu. A maior parte desses medos que sentimos são da morte. É o caminho que tenho seguido com as pessoas que eu tenho atendido: sair um pouco da imersão no sofrimento e olhar o todo. Quando estamos imersos no presente, no sofrimento cotidiano, a gente não reflete.
Qual é a mensagem que você quer transmitir nessas canções?
Eu falo sobre a questão racial tendo muito carinho pelas mulheres negras. Falo da importância da gente se olhar com mais respeito. De desconstruir o padrão colocado para a gente, que impede a gente de perceber as nossas potencialidades; se perceber como bonita, competente, capaz. Numa das músicas, “Luta dupla”, eu falo do machismo dentro dos movimentos sociais, como no Hip-Hop. Da importância de nós mulheres nos posicionarmos e dos homens repensarem seu lugar de privilégio. O nome “Resista” já é a ideia do álbum, pensando na periferia, na juventude negra.
Como o machismo dentro do Hip-Hop afeta as mulheres artistas?
Sinto que interfere em dois pontos. Dificulta que as mulheres entrem no movimento e interfere na permanência também. Você se questiona: “Eu faço parte desse movimento?”, “Eu estou construindo com eles, e eles estão me vendo dessa forma?!”. Você não se sente respeitada. Eu acabo não conseguindo me articular muito com os rapazes do movimento. Por quê? Porque os objetivos são diferentes, os temas das letras são diferentes. Não que o meu seja melhor ou pior, mas são percepções de mundo muito diferentes. Com essa diferença e o machismo, fica difícil pra gente permanecer. Os homens já têm maior visibilidade e com esse machismo nas letras e posturas, você não se sente parte. Isso é o que fui percebendo. Por isso, tento estreitar os vínculos com as mulheres e os jovens. Se algum cara quiser fazer uma parceria comigo, que ele venha até mim. Tem uns caras com perspectivas diferentes, com esses rola de fazer uma parceria. Mas com outros…