Início Opinião Artigos COLUNA VOZES VELADAS: MILTON NASCIMENTO, CRIOLO E O SENTIMENTO DE MUNDO

COLUNA VOZES VELADAS: MILTON NASCIMENTO, CRIOLO E O SENTIMENTO DE MUNDO

Milton Nascimento e Criolo.
(Foto: reprodução)


João V. Bessa *

Folheando as páginas de “Sentimento de mundo”, lemos o poema “Congresso Internacional do Medo”, em que Drummond trata desse sentimento tão marcante de nossa experiência humana. O medo “dos ditadores, dos democratas, da morte e de depois da morte” que “esteriliza os abraços” e nos acompanha por todos os lados, como uma sombra. Quando publicou esses poemas, Drummond vivia a guerra, há 80 anos de distância no tempo. Apesar de antigas, suas palavras fazem sentido para quem vive em um dos países mais afetados pela atual pandemia e, por isso, sente medo e ansiedade.

O amor parece ter se refugiado mais abaixo dos subterrâneos e nos abandonado. Se vemos as imagens das avenidas vazias do centro de São Paulo, sentimos estranheza. Afinal, quem imaginaria vislumbrar uma paisagem como essa, há quatro meses atrás? Essa cena compõe o novo videoclipe de “Não existe amor em SP”, que faz parte do EP “Existe amor” de Criolo e Milton Nascimento, produzido por Daniel Ganjaman.

Nove anos depois de “Nó na Orelha”, Criolo retorna ao seu hit e o apresenta em novo arranjo, num dueto com Bituca, acompanhado do piano de Amaro Freitas. Por mais que os versos continuem os mesmos, o novo arranjo ressignifica a canção, a torna ainda mais reflexiva – e sensível – que a original. O encontro das duas vozes dá novo fôlego para o verso “não precisa morrer pra ver deus”, que se transforma em um mote de esperança.

Outro sucesso repaginado é “Cais”, originalmente lançado no primeiro “Clube da Esquina” (1972). Dessa vez, são os versos “invento o amor e sei a dor de me lançar” que tomam um novo significado, no momento em que o amor parece distante de nós. Mas Milton e Criolo querem nos convencer justamente do contrário: que durante a aflição devemos abrir os corações para a solidariedade, dar valor ao coletivo e, juntos, reagirmos a essa força de embrutecimento. Que o amor nascerá em nós, como uma rosa vermelha e corajosa.

As imagens em preto e branco dos dois videoclipes nos sensibilizam ao mesmo tempo em que nos levam a refletir sobre seu significado para cada um de nós. As imagens de paisagens, misturadas a cenas de estúdio, nos remetem à força da natureza e nos fazem pensar na realidade solitária e fria do concreto, na fragilidade do tecido social de nossas cidades.

O intuito do EP “Existe Amor” é dar visibilidade para a pauta da moradia no Brasil. Atualmente, 40 milhões de pessoas não têm onde morar, apesar deste direito social ser garantido pela Constituição Federal (art. 6º). Assim, Criolo e Milton Nascimento lançam a campanha de financiamento coletivo #ExisteAmor. A meta é arrecadar R$250 mil para bancar a distribuição de refeições, cobertores, moletons e kits de higiene para 8 mil pessoas socialmente vulneráveis.

Ações como essa, vinda de artistas com visibilidade nacional, são importantes para chamar a atenção das pessoas para a dimensão da desigualdade social no Brasil. Se fôssemos mais atentos às questões de classe, nossas posturas em relação à realidade seriam outras. Ainda mais neste momento de fragilidade coletiva, é preciso combater as injustiças das estruturas.

O EP “Existe Amor” conta com outras duas canções, além das citadas acima. Ambas foram gravadas em parceria com o maestro Arthur Verocai: “Dez Anjos” e “O tambor”. A primeira, aliás, foi interpretada por Gal Costa, em 2015. Multi-instrumentista, Verocai é uma figura de grande prestígio no meio musical, mesmo que seu nome não seja tão popular quanto os de Milton e Criolo.

Ainda nos anos 1960, concorreu a alguns festivais da Canção; na TV Globo, foi diretor musical e arranjador de programas como “A grande família”. Posteriormente, atuou na área da música publicitária. Em 1973, Verocai gravou um álbum solo que foi muito mal recebido pelo público e pela crítica, ficando “esquecido” no tempo por décadas, até ser descoberto por um produtor de rap dos EUA. Hoje, o álbum é considerado uma relíquia de alto valor simbólico e financeiro para o nicho de colecionadores de discos. E Verocai recebe o prestígio que merece.

No mesmo livro em que encontramos “Congresso Internacional do Medo”, Drummond escreveu “Os ombros que suportam o mundo”, em que trata da agonia de se perceber embrutecido por testemunhar o abalo do mundo como ele conhecia. Mesmo que os olhos não chorem e o coração pareça seco, o poeta nos deixa uma mensagem de força e esperança que também dialoga com os versos de Milton Nascimento e Criolo: “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação”.

* Estudante de Jornalismo e guitarrista, se dedica ao estudo do papel da música na construção das subjetividades pretas brasileiras. Fluminense, nasceu em Cordeiro. Contato: jvbessajor@gmail.com / Twitter: @jvbessa

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