Lucas Maranhão *
“Tarkovski é, para mim, o maior. Aquele que inventou uma nova linguagem, verdadeira com a natureza do filme, que captura vida como um reflexo, vida como um sonho…” A citação do famoso cineasta sueco Ingmar Bergman pode confundir, já que, ao contrário do que parece, era ele uma das maiores inspirações para Tarkovski. Entre 1962 e 1986, o soviético construíu uma pequena, mas magistral filmografia.
Constantemente abordando temas metafísicos e uma linguagem quase surrealista, Tarkovski ainda conseguia ser brutal e intenso. Em sua carreira, foram sete filmes lançados. A baixa quantidade deve-se também a uma morte prematura, mas principalmente às dificuldades de produzir em sua terra natal, a União Soviética, em meio a censuras e bloqueios econômicos. Por consequência, viria a produzir seus últimos dois filmes fora de seu país.
A qualidade, por outro lado, é inquestionável, sendo suficiente para torná-lo um dos cineastas mais renomados da história. Seu modo, bastante exclusivo, de utilizar longos planos e cenas – somado à sua visão estética, permitiu que compusesse momentos belos, ainda que fossem sujos e sombrios, como um túnel subterrâneo abandonado, ou incertos e solitários, como uma estação espacial desamparada.
SOLARIS
Seu terceiro filme e primeira incursão na ficção-científica, Solaris (1971) é um filme mais sobre humanidade do que ciência. Tarkovski criticava o gênero, rotulando-o como comercialismo vulgar. Curiosamente, era constante o uso de elementos da ficção-científica em seus filmes em maior ou menor escala. Em Solaris, a União Soviética explora um planeta dominado por um grande oceano. O grande conceito científico por trás da narrativa é que o oceano do planeta Solaris funciona como um cérebro. Sabendo disso, a equipe de cientistas da colônia passa a tentar se comunicar com ele.
A maneira que o oceano encontra para se comunicar é vasculhando o cérebro dos membros da equipe e recriando – em carne e osso – pessoas presentes em suas memórias. Porém, isso começa a levar o grupo à insanidade. Tarkovski usa essa trama para tentar entender as relações humanas com o conhecimento e o real significado de ser humano.
O filme também é constantemente apontado como um contraponto ao futuro proposto por Stanley Kubrick em 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968). Enquanto o futuro de Kubrick é altamente tecnológico com seus cenários brancos e limpos, Tarkovski cria uma estação espacial caindo aos pedaços, com fiações visíveis e parcialmente destruída pela insanidade de seus antigos residentes. Enquanto alguns dizem que Tarkovski decidiu fazer Solaris após assistir 2001 e odiar, outros afirmam que ele só viria a conhecer o filme depois do lançamento do seu. O único consenso é de que ele odiou o filme de Kubrick.
A situação criou uma rivalidade entre os dois cineastas, que ao meu ver, só perdurou justamente por ambos serem tão parecidos. Tanto 2001 quanto Solaris são obras-primas e é maravilhoso perceber como os filmes apresentam as diferentes realidades de cada polo da Guerra Fria.
STALKER
Seu melhor filme, entretanto, viria a ser seu último na União Soviética. Enquanto Solaris embarca na ficção-científica espacial, Stalker (1979) é sobre um futuro distópico. A estória conta que em uma região da Rússia existe uma área proibida, protegida pelo exército, conhecida como a “Zona”, onde a realidade parece se comportar de maneira diferente e fatal. Porém, a Zona também era capaz de garantir a realização dos desejos mais profundos para daqueles que conseguissem atravessá-la.
Assim, apesar do desconhecido, muitas pessoas se arriscavam e, para isso, contratavam um “Stalker” para guiá-las. O filme acompanha a incursão de três homens pela Zona (um stalker, um professor e um escritor), enquanto eles tentam sobreviver às armadilhas do local.
Variando entre cenas de um sépia agressivo, que dá um aspecto enferrujado à imagem, e de cores intensas (dentro do ambiente da Zona), Stalker é um filme intenso, visceral e muito sujo. Os incríveis cenários da Zona são intimidadores e para criar a atmosfera de abandono, Tarkovski utiliza-se de indústrias e usinas nucleares desativadas como locações. Inclusive, o constante contato com resíduos químicos desses locais pode ter sido o causador de sua morte.
Não apenas sua morte, já que tanto Tarkovski quanto sua esposa Larisa Tarkovskaya e o ator Anatoly Solonitsyn (que interpreta o escritor e aparece em vários outros filmes do diretor) morreram prematuramente com o mesmo tipo de câncer de pulmão. O designer de som do filme, Vladimir Sharun, era um dos que afirmavam ser essa a causa das mortes.
O SACRIFÍCIO
Depois de descontentamento com a censura soviética, Tarkovski decide produzir um filme na Itália, Nostalgia (1983). Depois disso, anuncia que nunca mais voltaria à sua terra natal. Seu último filme, O Sacrifício (1986), foi concluído em seu leito de morte e inclui pesadas críticas às políticas nucleares das potências globais.
Dessa vez, o cineasta encontra seu ídolo, Bergman, na Suécia, que apadrinha seu novo e final trabalho. Nele, acompanhamos a história de um famoso jornalista e crítico de arte que vive isolado com sua família. Em seu aniversário, ele recebe a visita de amigos e durante a reunião é anunciado o início do confronto nuclear.
O filme reflete os pensamentos de um homem que sabia estar à beira da morte, assim como o autor. Sendo um filme muito pessoal e coerente com o que Tarkovski passava nesse momento, é impossível separar O Sacrifício de seu contexto.
Aliás, “Sacrifício” não podia ser um título mais apropriado para a derradeira obra de um artista que, literalmente, deu sua vida pela arte.
- É jornalista, designer e apaixonado por cinema.