Início Opinião Coluna LOUVADA SEJA NOSSA COR: A EMERGÊNCIA DOS POEMAS DE FERNANDA NASCIMENTO

LOUVADA SEJA NOSSA COR: A EMERGÊNCIA DOS POEMAS DE FERNANDA NASCIMENTO

Fernanda Nascimento *

Ela 

Ela é raiz
é semente
a serpente.
Ela é tormenta
é muralha
a imensidão.
Ela caminha nas nuvens
derruba o vento
é a tempestade.
Ela é o meio e a estrada
a margem…talvez a terceira de Guimarães…
Deságua,
cachoeira em lágrima viva.
Ela é o próprio oceano.
É o óvulo e o fluxo,
o princípio.
Ela é a história, é a memória
Negra.
O cabelo livre, o corpo nu
a pele solta
os olhos de águia e as unhas de fera
a boca e a saliva
o sabor.
Ela é a filha, a mãe e a avó numa só
Sangue.
Ela é o impulso, o improviso
o sem norte,
ela é o sul, a América.
Entre o medo e a chegada
ela é a descoberta
o ponto de partida
a despedida.
Ela é o sexo e o purgatório
o corte e a ferida em carne viva.
O milagre e o pé no chão.
O instante e o pra sempre.
Ela é o tempo
ela não começa
ela não termina
Calmaria.
É o belo e o ridículo
É o fundo, o poço
A salvação.
É loucura e desalinho
é o grito
Poesia.

Eu, várias

De longe minhas primeiras mulheres vieram

Cozinheiras

Parideiras

Mucamas 

Velhas

Parteiras

Benzedeiras 

Rainhas 

Em mim habitam várias

Meninas

Santas

Bruxas 

Mártires

Feiticeiras

Messalinas 

Sagradas

Me cubro de muitas faces pretas

Percorrendo o oceano

Maria Felipe

Tia Ciata

Mariana Crioula

Dandara dos Palmares

Marielle Franco

Tereza de Benguela

Outras tantas

Uma multidão de mulheres preparadas para as batalhas

Guerreiras de um quilombo 

Guiadas pelos santos na escuridão

Suspirando nos campos, nos ventos 

Em todos os cantos

Sem tempo e sem descanso

Cabelos crespos

Mãos fortes

Lábios firmes

Pés descalços

Lenços e raiz

Sou muitas

Minha mãe e minha avó numa só

Incomodo

Um artista come o mundo mas nunca se sente farto!
Eu engulo o mundo
Eu ouço o mundo
Eu vejo o mundo
Eu toco o mundo
Eu sinto o mundo quente
e por dentro eu enlouqueço
Não me acomodo
eu me incomodo
Eu como o mundo.
Mas se me permite mundo,
meus sentidos vão além das suas expectativas,
além das suas medidas,
além dos seus limites.
Eu vou além!

Engasgo

Naquele dia
a dureza dos dias
se fazia.

Sentados nas cadeiras desajeitadas
com as colunas retorcidas,
sentiam fisgadas no nervo ciático e o pulso acelerado.

Muitas dobras e desdobramentos
Vis sentimentos

Descaso
Derrame
Despejo
Desprezo
Desmonte

A morte escancarada
Luto
Vazio
Poço
Fundo

O caminho interrompido
Partida e silêncio…

O povo que ali estava
Por enquanto engasgado
Talvez perdesse o tino
Mas se entreolharam
Levantaram – se das cadeiras e foram abrir mais estradas

Tempo

Coisa do engasgo 
Do diabo 
Do descoberto
Do feito e mais que feito
Do lugar – saudade
Da também dita 
Bendita felicidade
Desconcertado e infiel
Escancarado 
Mimado e entorpecente
Fulminante e incoerente
Vento!
Ah tempo…
Esse temporal…

Fim de tarde

Os contornos, as formas e as linhas se misturavam
as imagens se amontoavam deixando a vista improvável
nenhum som, nem contexto
o ar parado
a casa sendo desbravada pelas retinas, secas e quentes
sombras e segredos numa parede vazia
o silêncio escancarado
as palavras deixadas para a flor.
Acalmo a miopia,
respiro e lá se foi a tarde!
A boca se mexe devagar num sorriso sem graça de quem não viu o tempo passar.

Para o meu futuro filho

Você nascerá num país

Que está na encruzilhada 

Entre a cruz e a espada

Matando seus ancestrais

Um país preto, em desalinho

Entre as favelas e os morros

Um moinho de desalentos

Aqui matam mulheres

Matam crianças 

Matam flores

Matam bichos

As suas águas fedem

As suas matas se ferem

Um punhado de desamor!

Eu sei, talvez eu não queira que você venha

Mas, se mesmo com meu medo

Você vier

Nascido num Brasil carente

Sobrevivente

Saiba que seus anteriores

Foram abolicionistas, guerreiros, reis e rainhas

Honraram e guardaram sua gente

Desejo que nasça já numa terra sem guerras

Sem mitos, sem epidemias, sem mentiras

E que o homem já esteja curado.

Você nascerá preto

Louvada seja nossa cor!

Mas se de outro jeito for

Então que você persista

Insista 

Resista

Nesse país racista

E seu peito estará guiado 

Pelos orixás

Pelos pajés

Por Jesus de Nazaré

Adiante com humanidade

Você estará livre

Como nós não chegamos a ser.

Esses tempos

São tempos sombrios para a Utopia
Em tempos assim quase não sonho
Quase não adormeço
Uma dor de cabeça 
Uma azia
Um tremor
De dentro para dentro uma dor no estômago que sobe até o peito
Em tempos de febre é difícil ficar em paz.
Pego livros de poesia
Tomo chá de hortelã
Escrevo um bilhete
Caminho um pouco
Vejo fotografias antigas
Limpo a casa
Converso com o cachorro
Dobro os lençóis
E não funciona
De dentro para fora uma imensidão de medos e incertezas
Ficar tranquilo em tempos de guerra é impossível.
Ouço um rapaz vendendo chuchu na rua
A vizinha de baixo lavando a calçada
A vizinha de cima gritando com o marido
A vizinha da frente irritada com o seu próprio silêncio
Em tempos de trânsito é difícil ter sossego
Mas o tempo passa…
Duas crianças correm e brincam debaixo da janela do meu quarto
De fora para dentro são gotas homeopáticas de esperança
Penso:
Em tempos de infância é possível ser feliz
Recebo de presente, minha utopia de volta.

Poesia

Poesia é uma menina de tranças 

sentada na cadeirinha de bicicleta da mãe

com a cabeça inclinada para trás,

olhando para o céu

sem se dar conta 

do trânsito, da cidade, dos caminhões e dos apartamentos.

Poesia é o olhar preenchido de azul.

No azul tinha um pássaro,

uma abelha e uma nuvem em formato de caramujo.

O asfalto era azul, crespo, comprido, quente.

O azul refletia os raios de sol nas janelas da casa.

Azul era a blusa da mãe molhada de suor

Era o mar.

Azul era o laço de fita da menina

Nele habitava a inocência e a beleza.

Naqueles segundos o azul brincava com a menina

E a poesia preenchia a tarde com sua imensidão.

Fluxo

Quem me carrega é uma correnteza de rio
Água que escorre entre pedras
Quando chove sou menina de novo
E a correnteza me olha.
De dentro de mim, 
do meu rio – casa, 
a água de mina me inunda de folhas ao cair da tarde
De longe vejo um azulzinho de céu por cima da flor
E eu,
água escorrida
água caída
água fugida
água esquecida
Deixo a correnteza me entardecer.

Biografia

Atriz e escrevinhadora, Fernanda Nascimento é são-joanense, formada em Letras pela UFSJ e integrante do Teatro da Pedra. Pelos caminhos da poesia e do teatro revela-se!

Espaço ArteLetra

O Espaço ArteLetra é um ambiente de divulgação e circulação de produções artísticas e literárias, em particular de produções contemporâneas nacionais. Este Espaço de exposições tem como um dos principais objetivos apresentar projetos diversificados, incentivando a participação de novos artistas e contemplando diferentes suportes e linguagens, que tanto dizem da cena atual.

Uma das intenções do Espaço ArteLetra é aproximar o público de um amplo conjunto de obras, estimulando o acesso e consumo de arte. Ao trazer essas produções para o espaço privilegiado do Notícias Gerais, queremos suscitar novos diálogos e questões latentes da nossa sociedade, contribuindo para a formação de público e troca de experiências.

O palíndromo ArteLetra, formado pelo espelhamento quase perfeito das palavras “arte” e “letra”, apenas ressalta a característica híbrida das produções contemporâneas, e a estreita relação entre as artes, palavras e mídias. Esse laço é aqui uma representação das nossas relações, da maneira como nos correspondemos, e do reconhecimento de que as manifestações culturais nos tornam mais próximos, ainda que cada qual com seu olhar.

O Espaço ArteLetra mantém um calendário regular, sendo a cada semana um/a novo/a artista convidado/a.

Fiquem antenadas/es/os!!!

Deborah Castro, curadora.
arteletra.ng@gmail.com

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui