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MANELÃO, O GOLEIRO QUE LARGOU O BOTAFOGO DE GARRINCHA PARA VOLTAR AO VILA DO CARMO DE BARBACENA

Manelão, hoje, curtindo a aposentadoria e as boas lembranças, mas sem se desligar do Vila do Carmo, clube do qual é presidente. Foto: Lucas Guimarães

Lucas Guimarães
Especial para o Notícias Gerais

Na década de 60, o Botafogo era um dos poucos times brasileiros que batia de frente com o Santos de Pelé. Em 1964 e 1966, o time do rei do futebol ficou com a vice-colocação da Taça Roberto Gomes Pedrosa. Na época, a competição contava com os melhores times do Rio de Janeiro e de São Paulo. E nas duas ocasiões o campeão foi o Botafogo. O Glorioso contava com uma verdadeira seleção, com Manga, Gérson, Afonsinho, Jairzinho e Mané Garrincha. E, por cinco meses, em 1965, o time carioca contou, também, com o goleiro Delvaux que tinha 27 anos e trocava o Vila do Carmo, de Barbacena, pelo Botafogo.

Manoel Delvaux Castañon não é barbacenense. Ele nasceu em Guarani, um município com cerca de 9 mil habitantes, que fica a 52 quilômetros de Ubá. Aos 15 anos, Manelão, como é conhecido pela sua altura de 1,85 metros, se mudou com a irmã para Barbacena e começou sua trajetória no Vila do Carmo. Em 1959, com 21 anos, o goleiro casou-se com Suelly Trad, filha do presidente do Vila, Estefano Trad, e, no mesmo ano, passou em um concurso estadual para auditor fiscal, conciliando o emprego com o futebol.

Em 1965, o Botafogo viajou à Juiz de Fora para um amistoso, enfrentando a seleção local. Delvaux, nome que era chamado no meio futebolístico, foi convidado para disputar essa partida. “Eu treinei durante a semana, e é até chato falar assim, mas é a verdade, perdemos de 4 a 1, mas eu fui o melhor jogador em campo. Daniel Pinto, que era o treinador (do Botafogo), me pegou no meio do campo. Eu fiquei muito apertado no meio daqueles homens me chamando ‘você vai com a gente agora’. Eu não podia, eu tinha família, a coisa era mais complicada”, conta o ex-goleiro.

Além de sua família, Manoel tinha um emprego garantido em Barbacena, e não era possível transferi-lo para o Rio de Janeiro. Seu chefe, José Teixeira Brandão, interveio a seu favor na situação complicada: “‘Seu’ Brandão viu que eu estava no meio daquele povo, e eu disse para ele ‘eu não posso ir, como que eu faço?’. Ele pegou e disse para eles ‘na terça-feira ele vai, hoje ele não pode ir não’. E realmente eu fui na terça, me apresentei, e no dia seguinte joguei contra o Fluminense”, relembra Manelão.

Manoel e sua esposa, Suelly, em 1958. Foto: Arquivo pessoal.

A estreia do goleiro foi, justamente, contra sua equipe do coração: “Eu achei muito esquisito. Era uma responsabilidade muito grande, depois de tanto sucesso em uma partida, eu não podia jogar aquilo por terra abaixo. Para mim foi muito tenso, tive que ter muita atenção. Ganhamos o jogo por 3 a 1”. A princípio, a contratação de Delvaux era para completar uma excursão que o Botafogo faria para a África do Sul, contudo, no final das contas, não aconteceu essa viagem.

Como a posição de goleiro tinha um dono, o pernambucano Manga, considerado um dos maiores goleiros da história do futebol brasileiro em seu tempo, Manelão era usado no chamado “quadro misto”. Esta era uma equipe de transição, onde jogavam jogadores reservas, e alguns titulares que voltavam de lesão ou estavam melhorando seu preparado físico.

Enquanto jogava no Botafogo, Delvaux ainda era auditor fiscal, mas não conseguia exercer a função morando no Rio de Janeiro. Além disso, sua esposa, Suelly, não pode se mudar para a capital da República, e durante a estadia de Manelão no Botafogo, ela o visitava raramente, ficando na casa de parentes. Cinco meses depois de sua chegada no clube carioca, Brandão, o chefe que segurava o emprego do goleiro em Minas Gerais, havia falecido, e o goleiro precisou fazer uma escolha difícil. Largava em definitivo seu emprego de auditor fiscal concursado em Barbacena, ou dava adeus ao Rio de Janeiro e ao Botafogo de Garrincha.

“Eu fiquei desesperado, fiquei umas duas ou três noites sem dormir, para eu tomar a decisão. Eu deixei a vaidade de lado e voltei para Barbacena”, relembra Manelão, que, então rescindia seu contrato com o Botafogo e voltava à Minas Gerais para sua antiga vida. Família, esposa, emprego e Vila do Carmo.

Uma cidade dividida

Como tudo em Barbacena, o futebol também era dividido entre as duas famílias que ao longo dos séculos deram as cartas na política local: Andrada e Bias Fortes. O Olympic era o time dos Andradas e o Vila do Carmo,  o dos Bias Fortes. “A política aqui sempre foi muito forte, os Andradas e os Bias (Fortes). Então, qualquer coisinha que envolvesse alguém que fosse de um lado encrencar com alguém do outro lado dava uma confusão danada. Entre os jogadores não, era mais entre os dirigentes e os torcedores mais exaltados”, lembra Manelão, que fala de ser vilense com multo orgulho algumas vezes durante a entrevista.

O clube barbacenense era forte no futebol regional na época. Com Manelão, em 1968, o Vila foi campeão da competição de 15 equipes que classificava para o campeonato mineiro da primeira divisão. Em 1969, o Vila ficou em 13º entre 16 clubes, no campeonato mineiro em que o Cruzeiro de Tostão se sagrou o campeão.

Em 1970, Manelão foi jogar em Juiz de Fora, disputando o campeonato mineiro pelo Sport. Quando acabou a competição, na qual o Sport foi o 7º colocado, o goleiro deixou o Verdão da Avenida, e retornou ao Vila do Carmo. Nessa volta, o Vila não tinha mais uma equipe profissional, mas sim amadora. Por diversão, Delvaux jogou amistosos e competições até os 78 anos. Em 1989, Manoel se aposentou de seu emprego como auditor fiscal. Atualmente, ainda reside em Barbacena, agora com 82 anos, e é o presidente do Vila do Carmo, já em seu terceiro mandato.

Manelão, com a camisa do Vila do Carmo, de Barbacena.
Arquivo pessoal, cedida por Elton Belo Reis, do BarbarasCenas.

Histórias do Botafogo e o olhar ao passado

Manoel guarda com carinho as histórias vividas no Botafogo. O ex-goleiro elogia os antigos companheiros, dizendo que eram formidáveis. Conta que, nos treinamentos, mesmo os mais intensos, precisava ficar de olho em Garrincha e Manga, porque os dois corriam e pulavam nas costas dos colegas de elencos. Gérson e Jairzinho também foram citados.

“Nós fomos para a sauna, e eu esqueci que tinha que tirar o cordão. E eu sempre usei um cordãozinho de ouro no pescoço, que era minha proteção. Na posição em que eu estava sentado, o cordão não encostava. Quando nós levantamos, que a medalhinha encostou no meu peito, nossa senhora, só faltou queimar. Foi uma zoação em cima de mim ‘o mineiro foi para a sauna com cordão no pescoço’”, relembra Manelão da história com Jairzinho em 1965.

Jairzinho, cinco anos depois, faria história com o Brasil na Copa do Mundo do México. Artilheiro da seleção com sete gols, Jairzinho ganhou o apelido de ‘furacão da Copa’ na campanha do tricampeonato mundial.

Outro que iria fazer uma Copa do Mundo fantástica em 70 era o meia Gérson, apelidado de ‘canhotinha de ouro’. Sobre o maestro do Botafogo na época, Delvaux conta outra história: “O Admildo Chirol era o preparador físico do Botafogo e da Seleção. Em um determinado dia, ele chamou todo mundo em um canto e começou a falar a respeito do condicionamento físico. O Admildo começou a falar que a evolução do Airton estava sendo muito grande, porque ele estava sem fumar, e perguntou para ele ‘quanto tempo tem, Airton?’, e o Airton respondeu ‘tem três meses que eu não ponho um cigarro na boca’. Aí o Gérson levantou, com aqueles calções compridos, antigamente usava calção curto, mas ele usava comprido, camisa para fora, todo desengonçado… Levantou, virou e falou ‘pois eu fumo três maços de cigarro por dia’. Acabou a preleção. O Gérson era muito gozador, gente boa demais”.

Na foto de 1965, jogadores do Botafogo e da equipe de Três Rios. Fileira de cima, da esquerda para a direita: Joel (2º), Delvaux (3º), Manga (4º), Fifi (6º), Zé Carlos (8º), Gérson (10º) e Paulistinha (13º). Fileira de baixo, da esquerda para a direita, Rildo (2º), Garrincha (4º), Sucupira (6º), Jairzinho (8º) e Arthur (10º). Foto: Arquivo pessoal.

Sobre histórias tristes e escolhas felizes

Como dito, era muito difícil Manelão sonhar com a titularidade no Botafogo, já que Manga era o goleiro titular da equipe. O goleiro pernambucano, além do clube carioca, foi ídolo no Sport do Recife, no Internacional de Porto Alegre e no Nacional do Uruguai. Delvaux conta do primeiro encontro com Manga no Botafogo: “A primeira pessoa que eu estive lá foi com o Joel, lateral-direito. Me levou para o vestiário, me mostrando para todo mundo, ficamos sentado em uma escada que dava para o campo. Daí a pouco veio o Manga, e ele falou: ‘Aí Manga, olhe quem está aqui’, e o Manga, sacudindo o dedo em meu nariz, disse; ‘aqui não tem pra você não’”.

Manga, ou Haílton Corrêa de Arruda, era de família pobre em Recife, e ainda criança, para ajudar na renda da família, vendia água na rua. A simplicidade, a simpatia e o carisma o acompanharam em toda sua carreira. “O Manga falava assim: ‘você vai à Minas?’. Um pernambucano puxando o xis do carioca, ‘você vai à Minas?’. Eu dizia que sim, e ele ‘traz uma linguiça lá para eu dar para a nega véia (a esposa dele). E eu levava”, conta, rindo, Manelão.

Contudo, os últimos anos de Manga não foram fáceis. Uma matéria do Esporte Espetacular, da Rede Globo, de janeiro de 2020, abordou a situação do ex-goleiro. Desde o encerramento de sua carreira, Manga vivia no Equador, e, nos últimos anos, sofreu com problemas renais por uma disfunção na próstata.

Sem dinheiro, Manga dependia do sistema de saúde equatoriano, que dava uma fila de meses para a cirurgia que o goleiro precisava. Nesse tempo, sua esposa, Cecília Cisneros, ficou cuidando do marido que não conseguia mais andar. No Nacional do Uruguai, Manga foi campeão mundial em 1971. Sua esposa, em 2019, então, ligou para o consulado uruguaio no Equador pedindo ajuda para o marido.

Prontamente, a corrente para ajudar o ídolo do Nacional foi enorme. Um grupo de quatro torcedores do clube levou Manga e a esposa para Montevidéu, Estes torcedores deram moradia e dinheiro para o goleiro, levando-o, quando um pouco melhor, para os jogos do Nacional. E, para arrecadar dinheiro para Manga, venderam bonés e cartas do ex-goleiro. A casa onde ficou o pernambucano virou atração para os torcedores, que iam retribuir o que o ídolo fez pelo seu clube. Depois da cirurgia feita com sucesso em novembro de 2019, Manga e Cecília voltaram para o Equador para ficarem perto da família, mas, antes, os torcedores deram cerca de R$ 30 mil ao goleiro, fruto de uma vaquinha.

Manelão relata ter se emocionado assistindo a matéria do Esporte Espetacular sobre o antigo companheiro: “Quando eu vi o Manga na televisão, eu chorei, nossa senhora. Quando meu filho viu como eu fiquei, ele também saiu da sala. Quer dizer, ele deve ter ido enxugar as lágrimas no quarto. Coitadinho do Manga, eu fiquei muito triste”. Manoel Delvaux tenta esboçar como seria sua vida se tivesse ficado no Botafogo, mas ele também não sabe. O mineiro de Guarani lembra que Manga vivia só do futebol, que não tinha emprego como ele, então desiste de fazer um paralelo.

Manoel Delvaux relembra que a realidade do futebol naquela época era outra, pois, além dos jogadores não serem bem vistos, os salários eram mais baixos, e o que salvava mesmo, segundo ele, eram os “bichos”, valor que recebiam por ganhar uma partida ou um campeonato. Hoje, olhando para trás, Manelão é bem resolvido com suas escolhas: “Fiquei com saudade, fiquei, mas não tenho arrependimento nenhum, nenhum mesmo. Porque eu olhei para a minha família”, avalia.

Delvaux (esquerda) e Manga (direita), em 1965. Foto: Arquivo pessoal.

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