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OUVIDORES DE VOZES SE UNEM PARA COMPARTILHAR EXPERIÊNCIAS E AFETOS

A foto mostra a jornalista autora da matéria junto ao grupo Ouvi Falar, durante encontro realizado no campus da UFSJ.
Nos encontros do Grupo Ouvi Falá, todos têm o mesmo direito à voz: até eu, a jornalista que fui só para relatar a experiência, fui convidada a dividir minhas experiências e impressões sobre o que significa ser mulher!

Najla Passos
Da Editoria

A carioca Marcelle Lopes de Araújo tinha 17 anos quando aconteceu. “No início, era como se tivesse uma bolinha de pingue-pongue batendo o tempo todo dentro da minha mente. E então, eu comecei a ouvir vozes”, conta.

Assustada, sem saber como lidar com aquilo, abandonou os estudos. Parou de comer e de beber. Ficou agressiva com as pessoas. “Meu pai dizia que eu estava com o diabo no corpo”, lembra-se.

Diagnosticada como esquizofrênica, foi internada três vezes em clínicas psiquiátricas. Tomou tantos remédios diferentes que se sentia uma cobaia.  Em um momento de crise profunda, tentou suicídio.

Hoje, aos 43 anos, leva uma vida normal. Mora sozinha em Barroso (MG), cozinha, viaja, malha. Administra sua casa, sua vida e seus desejos. Ainda ouve vozes. Mas agora sabe lidar com elas.

Marcelle é uma das fundadoras do Grupo Ouvi Falá, um coletivo formado por ouvidores de vozes de São João del-Rei e região, que se reúne uma vez por semana, no campus Dom Bosco da UFSJ, para trocar experiências e estratégias de enfrentamento.

“O grupo nos ajuda com a troca de experiências. É melhoria garantida na nossa qualidade de vida”, defende.

A imagem mostra Marcelle a frente do balcão da sua cozinha americana: ela cuida sozinha da sua casa e da sua própria vida.
Marcelle Lopes de Araújo, 43 anos, leva uma vida normal. Mora sozinha, cozinha, viaja, malha. Administra sua casa, sua vida e seus desejos. Ainda ouve vozes, mas já sabe lidar com elas. Foto: Najla Passos/NG.

“A voz da esquizofrenia é somente cerebral. Já a voz espiritual é mental e auditiva. é preciso saber diferenciá-las”, explica marcelle.

Sintoma de transtorno mental… ou não?

No jargão psiquiátrico, a experiência de ouvir vozes é chamada de “alucinação auditiva”. Mas pesquisas recentes têm mostrado que o evento é muito mais comum do que se imaginava. E que pessoas diagnosticadas como absolutamente normais também podem enfrentá-lo.

Uma pesquisa publicada no British Psychiatry Journal, em 2017, revelou que uma em cada 23 pessoas ouve vozes. Realizado na Inglaterra, o estudo contou com a participação de 7 mil adultos, entre pacientes com transtornos psiquiátricos e pessoas ditas normais. O percentual dos que ouvem vozes entre uns e outros foi praticamente o mesmo.

“Sofri tanto com as vozes que é como se eu não tivesse um passado. Não sei nada da minha história. Sinto que tive uma amnésia completa. Mas, agora, fiz as pazes com a vida”, desabafa SÔNIA.

Quer saber mais sobre os ouvidores de vozes? Marcelle conta aqui, neste vídeo!

Ouvir vozes traz sofrimento?

Para a maioria dos participantes do Grupo Ouvi Falá, a condição de ouvidor de vozes sempre significou um sofrimento profundo. São muitas as histórias de rejeição familiar, preconceito social, tentativas de suicídio, internações compulsórias. Mas, juntos, eles encontram mais fácil a superação.  

Sônia Lourdes Sacramento do Carmo, 61 anos, afirma que só começou a viver de fato muito recentemente, quando passou a entender a natureza das vozes que a atormentaram a vida inteira.

Ela atribui a boa fase à mudança na medicação prescrita por seu psiquiatra, agora menos agressiva, e também a sua participação no grupo são-joanense, que a ajudou a dividir com outras pessoas seus medos e angústias.

“Sofri tanto com as vozes que é como se eu não tivesse um passado. Não sei nada da minha história. Sinto que tive uma amnésia completa. Mas, agora, fiz as pazes com a vida”, desabafa.

O protagonismo do Ouvi Falá

A psicóloga Daiana participa do Primeiro Congresso Nacional de Ouvidores de Vozes.
A psicóloga Daiana Paula Milani Baroni, pós-doutoranda em Psicologia pela UFSJ e coordenadora do grupo Ouvi Falá de São João del-Rei. Foto: Arquivo pessoal.

Primeiro grupo de ouvidores de vozes de Minas Gerais, o Ouvi Falá começou a operar em fevereiro em 2018 com oito membros e, hoje, reúne mais de 20. Aberto a pessoas de todos os sexos, idades e religiões, funciona de forma horizontal e não aceita a pecha de grupo terapêutico.

“Este não é um grupo terapêutico. Não há uma teoria ou alguém que conduza os pacientes ao processo de cura. São eles mesmo que passam a se responsabilizar pelos acontecimentos e vão construindo seus caminhos para entender a natureza das vozes e mudar suas relações com elas”, conta a idealizadora do projeto, Daiana Paula Milani Baroni, pós-doutoranda em Psicologia pela UFSJ e coordenadora do grupo ouvidores de vozes de São João del-Rei.

Integrado ao Intervoice (Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes), o Ouvi Falá possui autonomia de gestão, mas obedece a alguns princípios delineados pelo movimento internacional. Entre eles, está a perspectiva de não encarar as vozes como sintoma de uma doença, como o faz a abordagem da psiquiatria tradicional.

“Nós não tomamos a audição de vozes como o sintoma de uma doença, mas como o efeito de acontecimentos que precisam ser enfrentados, analisados e compartilhados. É uma cura social, e não individual. E isso se faz no coletivo”, acrescenta a coordenadora.
De acordo com ela, nesses 40 anos de pesquisas, o Intervoice já conseguiu identificar que a experiências de ouvir vozes está muito relacionada a eventos traumáticos, como abusos sexuais ou negligência afetiva. “Podemos observar isso nos relatos dos membros do grupo”, acrescenta.

“Este não é um grupo terapêutico. Não há uma teoria ou alguém que conduza os pacientes ao processo de cura. São eles mesmo que passam a se responsabilizar pelos acontecimentos e vão construindo seus caminhos para entender a natureza das vozes e mudar suas relações com elas”, explica Daiana.

Experiência internacional

Daiana conta que conheceu o Intervoice em 2015, quando esteve na Itália fazendo seu doutorado. Em 2017 voltou ao Brasil e passou a se aproximar das pessoas que já estavam desenvolvendo este trabalho no país, a partir da vinda do coordenador internacional do Movimento, Paul Baker.

Em meados daquele ano, começou a formalizar o grupo de pesquisa, aferir a demanda na região, selecionar estagiários e divulgar a proposta. Em fevereiro de 2018, as reuniões começaram.

Desde o ano passado, o grupo conta também com a participação do médico e professor da Faculdade de Medicina, Paulo Maurício. Este ano, ele irá abrir uma nova frente de trabalho com ouvidores de vozes no bairro Tejuco, onde já coordena um centro de medicina antroposófica, cujo atendimento à população é gratuito, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

Os participantes do Ouvi Falá têm acesso também a sessões individuais, com equipes da Faculdade de Psicologia, formada por professores e alunos. Há, inclusive, aqueles que optam em não frequentar as reuniões coletivas, limitando ao acompanhamento psicológico privado.

Uma outra frente de trabalho desenvolve ações direcionadas aos familiares destes ouvidores de vozes.  

Cena do filme Uma mente brilhante.
O filme Uma Mente Brilhante, vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2001, é baseado na vida do matemático John Nash, que aprendeu a lidar com as alucinações decorrentes da esquizofrenia e, em função do seu árduo trabalho, conquistou um Prêmio Nobel. Foto: Divulgação.

Apoio da família é fundamental

Marcelle conta que já sofreu muito preconceito, mas hoje é muito bem tratada em Barroso, cidade que adora e adotou como sua. “As pessoas me respeitam porque aprendi a dominar minha esquizofrenia e minha mediunidade”, afirma.

Ela mantém um bom convívio com a mãe, os avós, o ex-marido. Mas a relação com o pai nunca mais foi afetuosa, desde as primeiras manifestações das vozes. “Ele não aceita. Não consegue lidar com isso”, ressente-se.

A última vez que se encontraram foi em 2016, no Fórum de Barroso. Marcelle procurou a Justiça para cobrar a pensão do pai, coronel aposentado da PM, que não queria ajudá-la voluntariamente.

“Ele não entende que as vozes me impedem de trabalhar. Elas não têm hora para falar comigo. É difícil conciliá-las com um chefe cobrando tarefas urgentes. Além disso, a espiritualidade me diz que minha missão é ajudar o próximo com trabalho voluntário”, esclarece.

Sônia já conta com grande apoio do casal de filhos, o que a ajuda muito a superar os obstáculos. Mas lamenta o preconceito que enfrentou por toda a vida. “Quando diziam que eu era doida, não imaginavam o quanto isso me fazia sofrer, porque eu nunca, nunca fiz mal a ninguém”, defende-se.

Marcelle sorri no terraço do seu apartamento, do qual muito se orgulha de cuidar sozinha e com bastante apreço.
“A espiritualidade me fala que minha missão é ajudar os que já se foram e também os outros ouvidores de vozes, que têm o mesmo problema que o meu”, explica Marcelle.

Manifestação espiritual?

Se para a psiquiatria tradicional a capacidade de ouvir vozes está associada à esquizofrenia ou outros transtornos psiquiátricos, para várias religiões, tanto cristãs quanto de matriz afro-brasileira, simboliza a capacidade humana de entrar em contato com o espiritual, com o sagrado.

Para os ouvidores de vozes, as explicações são diversificadas. Cada um deles atribui um sentido particular a sua própria experiência. Sônia é católica, frequenta eventualmente a umbanda, mas associa a capacidade de ouvir vozes exclusivamente à esquizofrenia diagnosticada.

Já Marcelle é espírita kardecista, e relaciona os diálogos com as vozes a dois episódios distinto: a esquizofrenia e a mediunidade. Ela afirma que há as vozes positivas e as vozes negativas. As primeiras, ela associa à mediunidade. As segundas, à esquizofrenia. Com o tempo, foi aprendendo a distinguir umas das outras. “A voz da esquizofrenia é somente cerebral. Já a voz espiritual é mental e auditiva”, explica.

Segundo Marcelle, a dica é ouvir as vozes, tentar diferenciá-las e burilá-las com base na doutrina espírita. “Se uma voz manda eu me jogar da ponte, não obedeço, porque sei que isso vai contra o evangelho”, exemplifica.

Em Barroso, ela é membro do Centro Espírita Eurípedes Barsanulfo, ligado à Aliança Municipal Espírita (AME). Entretanto, não pode participar das reuniões mediúnicas. “A AME não permite que usuários de medicamentos controlados desenvolvam a mediunidade em reunião mediúnica. Eu acho um erro, a AME deveria prestar a atenção no desenvolvimento da mediunidade de quem tem esquizofrenia”, afirma.

Marcelle defende que sua mediunidade é genuína e garante que ajuda as entidades que a procuram a encontrarem seus caminhos da forma que pode. Não acho ideal receber as entidades em casa. Por isso, as oriento a procurarem o centro espírita, que é o espaço apropriado”, afirma.

Sua religiosidade aflorada faz também com que assuma uma outra missão importante: ajudar e apoiar outras pessoas diagnosticadas com transtornos psiquiátricos. “A espiritualidade me fala que minha missão é ajudar os que já se foram e também os outros ouvidores de vozes, que têm o mesmo problema que o meu”, explica.

1 COMENTÁRIO

  1. Sou suspeita pra falar né? Mas esquizofrenia bem tratada,torna-se uma dádiva!Lembrando sempre que o Grupo Ouvi Falar não descrimina quaisquer tipo de religiosidade.Todos que aparecerem com os sintomas procurem Daiana Barone e marquem entrevista!Grupo Ouvi falar,tudo de bom!

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