Carol Rodrigues
Notícias Gerais
Nos últimos meses, as pessoas se acostumaram a olhar números. As estatísticas crescentes nos rodeiam a todo instante: os números de casos e mortes por Covid-19 no país, no estado e nas cidades. Os algarismos que contabilizam vidas se fazem presente, cada vez mais, no nosso cotidiano.
Mas é importante lembrar que por trás de cada um destes números que compõem a pandemia existem histórias, famílias e vidas, por vezes interrompidas. As estatísticas refletem uma realidade, que também precisa ser vista do ponto de vista humano, não apenas matemático.
É por isso que o Notícias Gerais inicia a seção Por Trás das Estatísticas, Saudade, para conhecer as pessoas que foram vítimas desta doença e mostrar que elas não são números.
Todas as imagens e informações presentes foram cedidas por membros das respectivas famílias. Caso você seja familiar de alguma vítima e queira prestar essa homenagem, entre em contato com a reportagem do NG pelo WhatsApp (32) 9 8508-4646 ou pelo e-mail redacao@noticiasgerais.net.
Para começar, conheça Maria José.
Natural de São João del-Rei, Maria José Pereira Chula Gomes, de 80 anos, foi a primeira vítima fatal da Covid-19 na cidade. A senhora, sempre ativa e independente, morava sozinha no Bonfim e dedicava seus dias à família e à igreja.
Cantora na Orquestra Lira Sanjoanense
Maria José era religiosa, devota de São José. Foi cantora na Orquestra Lira Sanjoanense por cerca de 60 anos. O grupo é o primeiro conjunto profissional de que se tem registro no Brasil e a mais antiga orquestra em funcionamento na América.
Além do canto, a senhora também era musicista e tocou violino durante muito tempo. Se apresentava sempre pela Orquestra nas igrejas, durante procissões, missas e festas religiosas. Com sua dedicação, Maria José também viajava para cantar durante eventos adorativos em diversas cidades históricas, como Tiradentes e Ouro Preto.
Um amor com muitas lembranças
“Era uma senhora otimista, de muita fé, muito esperançosa (…), sempre teve muita força para tudo, era o alicerce para todo mundo”, conta Matheus Henrique Lima Gomes, neto mais velho de Maria José.
A senhora ficou viúva há 10 anos do marido, Miguel José Gomes. Apesar de todas as dificuldades da vida, Maria José lidava bem com todos os problemas e amparava a família durante os momento de dificuldade. Matheus revela que ela “nem parecia uma idosa, assumia os problemas como qualquer um”.
Maria José sempre foi muito independente, apesar dos 80 anos de idade. O neto lembra que a ela decorava a casa inteira, sozinha, na época do Natal: “quando a gente chegava lá tinha pisca pisca até na parede e ela falava ‘eu que coloquei’”, diz.
“As pessoas acham que se (a pessoa falecida pOR COVID-19) já tem mais idade, se tem outra doença, então justifica, mas não justifica”
– pontua o neto de Maria José.
Com três filhos e quatro netos, a família se encontrava com Maria José todas as semanas, “nem que seja num domingo à tarde para tomar um café”, reforça Matheus Gomes.
Além disso, também era comum uma viagem anual em família. Neste ano, ela e as duas filhas foram em um ensaio de escola de samba e se divertiram assistindo à Portela. “Ela não bebe, mas até pediu para segurar o copo de cerveja na quadra para tirar foto”, relembra o neto.
Em 2019, toda a família foi passar férias no Rio de Janeiro e Matheus narra que as memórias da viagem são muito especiais. “Nós ficamos no mesmo hotel, ela (Maria José) sempre muito independente, se divertia demais, conversava”, recorda.
Durante a pandemia
Na chegada da doença, a família toda se preocupou muito em deixar Maria José o mais segura possível. As duas filhas, que moram na mesma rua em que a senhora residia, faziam as compras para que ela não precisasse sair – a não ser para ir em comércios pequenos do bairro.
No dia 24 de março, Maria José fez aniversário: completou seus 80 anos. Mas infelizmente não pôde comemorar com a família. No Dia da Mães, também, recebeu apenas palavras calorosas, abraços e beijos enviados do lado de fora do portão. “Agora, o que fica mais forte são essas lembranças dos últimos dias”, comenta o neto.
No dia 22 de maio, a família percebeu que Maria José não estava se sentindo muito bem, mesmo que a senhora tentasse transparecer o contrário. No dia seguinte, apareceu a febre e ela foi levada ao Centro de Especialidades Médicas e Odontológicas (CEM) durante a noite do dia 24.
No entanto, chegando lá, os médicos consideraram que ela não apresentava sintomas suficientes para ter exame coletado para Covid-19. Assim, Maria José voltou para casa.
Já durante a noite do dia 26, o estado de saúde dela piorou: Maria José foi encaminhada para a Santa Casa de Misericórdia e internada em leito destinado para pacientes com Covid-19.
“Era uma senhora otimista, de muita fé, muito esperançosa”
– expõe o neto, Matheus Gomes, sobre Maria José.
Foi feita a coleta de material para exame e veio a confirmação: Maria José estava infectada pelo novo coronavírus. Com o pulmão já muito debilitado, ela precisou usar máscara de oxigênio e, depois, ser entubada.
“No sábado (30), o médico disse que não tinha jeito, que a pressão dela estava baixa demais”. No dia 31, os rins da senhora pararam de funcionar e o neto conta que, a partir deste momento, a família já iniciou o luto. Com a piora do estado de saúde de Maria José, ela faleceu às 2 horas da manhã do dia primeiro de junho.
Morte sem luto
“As pessoas pensam que por causa da idade, eles já viveram muito”, diz Matheus. De acordo com ele, as pessoas olham os números e esquecem que, por trás dele, existem vidas inteiras.
Apesar de apresentar comorbidades, Maria José tinha todas as doenças tratadas. “As pessoas acham que se (a pessoa falecida por Covid-19) já tem mais idade, se tem outra doença… então justifica, mas não justifica”, pontua o neto.
Segundo Matheus Gomes, todos os acontecimentos se sucederam de forma muito rápida e, com a morte da avó por Covid-19, a família não conseguiu se despedir. Como medida de prevenção, os velórios estão proibidos e o enterro se limita a poucas pessoas, com caixão fechado.
“Até a roupa que a gente mandou para a funerária eles devolveram, porque não pode arrumar o corpo quando é morte por coronavírus”, relata o neto. Para ele, uma das partes mais difíceis é não poder dizer adeus e expressar o luto. “As pessoas não tem ideia de que, o que acontece na ‘cidade grande’ é o que a gente passou aqui em São João del-Rei”, completa.
Segundo Matheus, é importante que as pessoas comecem a pensar na pandemia não apenas como números, mas também como vidas que estão sendo interrompidas. “Não é normal as pessoas morrerem desta forma, é um vírus que (a transmissão) pode ser evitada”, finaliza.