Najla Passos *
Este setembro começa diferente para nós, brasileiros e amantes dos espaços de memórias. Em função da pandemia da Covid-1, as atividades da esperada “Primavera dos Museus” ficaram restritas ao ambiente virtual. Mas em outras paragens os museus começam a reabrir suas portas. E ainda que com restrições e novas regras, a lembrar belas histórias.
É o caso do meu preferido dentre todos os que já tive o prazer de visitar fora do Brasil. Não, ele não é um museu ferroviário. Mas cabe muito bem aqui nesta coluna porque contempla a minha paixão por estações antigas. O Museu D´Orsay está instalado em uma das mais belas delas, a Gare du Quai d’Orsay, construída na área central da capital francesa, em um prédio até então usado como palácio.
Ponta de lança do caminho de ferro que ligava Paris a Orleans, a estação foi projetada pelo arquiteto Victour Laloux para as comemorações da Exposição Universal de 1900 e inaugurada dois anos antes da virada do século. Nos anos 1940, as plataformas ficaram pequenas demais para o crescente tamanho dos comboios dos trens, adaptados para comportar o aumento do número de passageiros.
A estação, então, passou a ser usada para trajetos menores, do centro para o subúrbio, e parte dela funcionou como centro de correspondência durante a Segunda Guerra. Em 1970, a cidade concedeu uma permissão para que fosse demolida, mas com apoio geral acabou se transformando em hotel. E em 1986, foi transformada no Museu que abriga a mais sensacional coleção de obras impressionistas e pós-impressionistas do mundo.
Obra de arte
Há quem diga que a maior obra de arte do Museu D´Orsay é justamente a arquitetura da antiga estação. O relógio que adorna seu átrio principal é apontado por muitos visitantes como o ponto alto. Mas meu palpite é outro. A maior preciosidade do museu é a vista – principalmente quando emoldurada pelo grande relógio que marca o passar do tempo na Cidade Luz.
Eternizado por inúmeras produções cinematográficas, como A Invenção de Hugo Cabret (2011), o relógio do D´Orsay permite que, de dentro da edificação, se possa admirar um cenário estonteante. A edificação fica às margens do Rio Sena, em frente ao Museu do Louvre e aos Jardins de Tuileries. No horizonte, mais ao longe, as torres da Igreja de Sacré-couer, no boêmio Montmartre, também se revelam.
É claro que quem olha para dentro também contempla grandes miragens. Monet, Manet, Cézanne, Degas, Renoir, Seurat e Sisley, dentre outros tantos. É no Museu D´Orsay que fica “A noite estrelada sobre o Ródamo”, óleo sobre tela pintada em 1988 por Vicente Van Gogh, nove meses antes de ser hospitalizado e dois anos antes de cometer suicídio.
Criada à época que o gênio louco passou se tratando em Harles, no interior da França, quando a calma e a a quietude tomavam parte da alma do artista. Um contraste acentuado com a outra “Noite Estrelada”, a mais famosa e conturbada, que ele pintaria nove meses depois, pouco antes de ser hospitalizado. Hoje, a tela está no Museu de Arte Moderna (MoMA), de Nova York.
A coleção do museu tem várias outras atrações. Dentre elas, a irreverente “A origem do mundo”, capaz de suscitar a ira de legiões de fundamentalistas, do velho continente às américas, a ponto dos algoritmos das redes sociais terem sido programados a reconhecê-la como pornografia.
Só no ano passado, 3,6 milhões de visitantes passaram por lá. Este ano, com a pandemia da Covid-19, o D´Órsay manteve suas portas fechadas até junho, quando reabriu com capacidade reduzida, oferta de álcool em gel e a determinação que os visitantes usem máscaras e se mantenham a pelo menos um metro de distância um dos outros.
Um palácio que virou estação de trem e, mais tarde, se transformou em um dos mais belos museus do mundo, o D´Orsay é inspiração. É uma alerta de que, com boas políticas públicas, edificações que serviram ao desfrute de poucos podem se transformar em espaço de memória, aprendizado e fruição artística para muitos.