Victor Vianna *
Uma lembrança do meu tempo de meninice, que me veio à memória nesse momento de calamidade pública, é o provérbio matriarcal, “Hoje você não vai pra rua nem aqui, nem na China”. A entoação soava como uma ameaça de castigo, mas poderia ser uma forma menos nobre de apontar que, no Oriente, as pessoas gostavam de permanecer mais tempo dentro de casa, em seus afazeres domésticos. Sendo uma coisa ou outra, o certo era que a pessoa não ia pra rua e pronto. Não se imaginava, naquela época, uma possível existência de direitos e garantias fundamentais, como o salvo conduto de ir e vir. Era ordem imperial. Cumpria-se.
Nesses tempos de Coronavírus, quando a orientação ou determinação é ficar em casa em tempo integral, tem-se tempo para todos os afazeres domésticos, como por exemplo, cuidado com as plantas e pets, organização da caixa de ferramentas, lubrificação das dobradiças, arrumação de gavetas e documentos, revisão de álbuns de fotografias e, principalmente, tempo para reflexões.
Gastei também algumas horas abraçando uma expectativa de ficar rico. Se o plano desse certo, eu poderia comprar uma fazenda e me livrar do confinamento doméstico. Tenho todo o projeto anotado. O futebol nas tardes de domingo, pela TV, degustando uma “gelada”, estava cancelado. A própria “gelada” foi cancelada, por medida de precaução. Visivelmente preocupado, o filho mais velho tentava me consolar:
– É melhor evitar, né pai. O álcool pode baixar a sua imunidade. Tenha paciência que essa praga logo vai passar.
Impedido de ir pra rua, por estar dentro do grupo de risco, soube que a roda de bate-papo na porta do “Bar do Chico” estava suspensa. Na verdade, não se via mais a porta do bar suspensa. Ficou arriada, trancada, a exemplo da maioria das portas do comércio. Juntar os amigos para jogar um carteado era proibido pelo governo. Corríamos o risco de sermos penalizados com prisão e multa, por provocar aglomerações. Disseram que quatro jogadores e meia dúzia de gatos pingados, que atuavam como plateia, poderiam contaminar o bairro inteiro com o terrível vírus. Os almoços de domingo e os aniversários foram paralisados. Parece que ninguém completou anos, nesses meses angustiantes. Abundaram os noticiários da TV, que insistentemente nos traziam notícias sobre o índice de contaminação e mortandade virótica por todo o mundo. Resignados, nada mais nos restou senão, ater-nos em casa.
Até então, meses atrás, vivia-se num mundo onde a toda poderosa “High Tech” ditava regras, criava moda e conceitos. Onde tudo era inovação e modernidade. Jamais iria-se imaginar que um micro-organismo, nascido lá no Oriente, traria tanta mudança na vida das pessoas aqui no distante Ocidente, do outro lado do mundo. De início, acreditava-se que o império chinês daria conta do vírus, mas não deu. E o mundo desmoronou, lembrando os ensinamentos de Karl Marx ao dizer que “tudo o que era sólido se desmancha no ar, …” Fatídica profecia.
Voltando às minhas lembranças da infância, passei muitas horas refletindo sobre o significado daquele jargão matriarcal e não entendi de que forma ele se encaixava no contexto daquela época. Mas hoje, melhor pensando, me parece fazer sentido como um desejo de vingança, onde as pessoas não podem ir pra rua; nem aqui, nem na China.
- É estudante de Jornalismo da UFSJ e produziu este texto sob a orientação do professor Paulo Caetano.