Fernando Chaves *
A moda agora é bolsonarista resgatar e aplaudir vídeos do falecido político Enéas Carneiro, elogiando-o e acusando a mídia tradicional de ter construído a imagem de Enéas como um louco, durante suas candidaturas à presidência na década de 1990. Não é novidade o apego da extrema-direita ao personalismo, ao conservadorismo de costumes e aos discursos moralistas inflamados “contra a decadência da sociedade”.
Também já conhecemos bem a bajulação que o bolsonarismo faz de qualidades como a disposição ou a “macheza” de um líder para enfrentar sozinho “tudo que está aí na política”, ainda que isso lhe custe o rótulo de “louco” diante da mídia e da política convencional. Aliás, ser tachado de louco pode significar, para o bolsonarista, um distintivo, uma forma de marcar diferença positiva em relação ao establishment. Nesses pontos, as figuras pessoais de Bolsonaro e Enéas se aproximam: conservadorismo, moralismo exaltado, coragem e “macheza” no enfrentamento político, loucura atribuída por terceiros e por adversários.
Por isso, o resgate de vídeos inflamados de Enéas tem entusiasmado os bolsonaristas. Eles sentem que a chegada de Bolsonaro ao poder resgata a história de Enéas e vinga as injustiças supostamente sofridas pelo antigo candidato à presidência, que teria sido inviabilizado como líder nacional por conta da “manipulação” de sua imagem feita pela “mídia esquerdista” na década de 1990.
Interessante é que, apesar das semelhanças no discurso moralista e nos rompantes pessoais, politicamente a diferença entre Enéas e Bolsonaro é significativa. O primeiro sempre fez um discurso claramente estadista. O segundo é, hoje, entusiasta do Estado Mínimo e das privatizações, dando carta branca ao ministro da economia Paulo Guedes, representante do neoliberalismo tão criticado por Enéas.
O ato de bajular e aplaudir líderes políticos em razão de suas características pessoais (firmeza, “macheza”, coragem e até loucura aparente por enfrentar “o sistema”) é comum à extrema direita. Mas o que chama atenção na paixão simultânea por Bolsonaro e Enéas é que ela negligencia nesses dois líderes algo que é central em política, isto é, a concepção de Estado.
O que essa paixão dúbia revela sobre o bolsonarismo? Releva os principais critérios de escolha eleitoral e política da extrema-direita. São critérios moralistas, de identificação personalista, de culto à autoridade conservadora, à masculinidade e à ordem militar, de exaltação do enfrentamento enérgico contra o sistema político estabelecido e de frisson pelo homem que luta, na companhia de poucos, contra a decadência moral na sociedade e na política.
Mas a devoção dúbia por Enéas e Bolsonaro revela algo mais importante: a negligência profunda do bolsonarista médio em relação às questões políticas e ideológicas relacionadas à gestão e à concepção do tamanho e do papel econômico do Estado.
Ou seja, ao bolsonarismo o que mais importa na escolha eleitoral, para além da histeria anacrônica anticomunista, é a defesa dos costumes e da moral conservadora, além da imagem de masculidade e de enfrentamento agressivo ao que se considera imoral, seja no campo político, social ou privado. Isso descreve bem a adesão política de um bolsonarista, que é facilmente insuflada por emoções como o medo, a raiva, a frustação diante de um mundo que não lhe agrada, inclui ou representa.
As questões de política econômica, que certamente são as que mais interferem na qualidade de vida material das pessoas, são ignoradas pelo eleitor médio pró-Bolsonaro, que agora resgata Enéas Carneiro como um grande líder inviabilizado pela mídia e pela política convencional. Para o chamado gabinete do ódio, esse resgate se tornou uma forma de ataque retórico aos adversários do atual presidente da república.
O que vemos é a vocação do bolsonarista médio para seguir líderes machões, sisudos e conservadores. Pouquíssima capacidade e interesse em refletir sobre as questões efetivamente nacionais, políticas e econômicas. Eis a escolha política feita por critérios personalistas e morais, sob forte negligência em relação às questões de economia política. Uma escolha raivosa, identitarista e irrefletida politicamente. A esse tipo de voto e de escolha eleitoral despolitizada devemos muitas das mazelas que presenciamos nos nossos dias.
Enéas não tem minha admiração, mas era um estudioso e tinha ao menos coerência em seu discurso político-ideológico de viés nacionalista. Certamente, revira-se no túmulo ao ser resgatado hoje por aduladores e serviçais do neoliberalismo e da subserviência aos interesses dos Estados Unidos e do mercado financeiro internacional.
* O jornalista Fernando Chaves é mestre em Comunicação Política pela UFJF, ex-assessor de imprensa da Câmara de São João del-Rei e ex-secretário municipal de Turismo e Cultura em Resende Costa-MG.