Início Opinião Coluna TREM DE MINAS: “O ESTADO BRASILEIRO É INIMIGO DAS FERROVIAS”, DIZ LATUFF

TREM DE MINAS: “O ESTADO BRASILEIRO É INIMIGO DAS FERROVIAS”, DIZ LATUFF

Locomotiva GE BB33-7MP. Aquarela sobre papel, 2010.

Najla Passos *

Conhecido internacionalmente pelas charges ácidas e pela militância política, o cartunista Carlos Latuff é também um aficionado por trens e ferrovias. Desde os anos 2000 mantém um blog em que trata do tema, o Ferrovias do Brasil. Mas, ao contrário de outros espaços destinados ao assunto, consegue conciliar o caráter lúdico e aventureiro com a crítica engajada que o assunto requer no país do “rodoviarismo”. E tudo isso com o toque de arte que só seu talento ímpar consegue produzir.

Parece irresistível, não? E é mesmo, especialmente para quem mira, além das máquinas e bitolas, a história social do trem no país. Com duas décadas de incursões em ferrovias do Brasil e do mundo, Latuff é um expert neste debate. “Como chargistas, como uma pessoa acostumada a olhar o tema da política, eu não poderia me furtar a olhar a questão das ferrovias por um ângulo que não seja somente o do fã, mas também com um olhar crítico da política de sucateamento das ferrovias”, afirma ele.

Paixão tardia

A paixão de Latuff pelas ferrovias surgiu nos idos dos anos 2000 – e sem aviso prévio. Em 1990 ele trabalhou com o sindicato dos ferroviários da Central do Brasil. “Fiz charges sobre o Collor em relação às ferrovias”, recorda-se. Em 1994, esteve no Japão, fotografou os trens japoneses, e se impressionou com eles. Nada disso, entretanto, o fez se encantar pelo tema quanto um engarrafamento no centro do Rio, na década seguinte.

Foi em uma noite, voltando do trabalho, na altura da Estação Leopoldina, na Avenida Francisco Bicalho, que ele se pegou observando o trem de carga que cruzava a pista de asfalto. “O trem passava tão lento que comecei a pensar que dava até para subir no vagão e ver onde ia dar. Perguntei para onde ia o trem, mas ninguém soube me explicar. Fiquei com isso na cabeça”, conta.

O cartunista se informou, descobriu que os vagões saiam de Itaguaí, de uma estação chamada Brisa Mar. Não teve dúvidas. “Eu fui até lá e embarquei clandestinamente. Mas a primeira tentativa não deu certo: o trem parou em Japeri, no meio do nada, e ficou ali por horas. Eu não tinha água, nem comida… tive que voltar”, recorda.

Dias depois voltou já prevenido, com água, comida e um rádio para passar o tempo. “Peguei de novo o vagão de carga de minério. Em Japeri, esperei o tempo que foi necessário.  Depois de umas 4 horas, ele seguiu viagem e eu segui com ele. Foi maravilhoso: ele subiu a Serra do Mar e, quando chegou à Barra do Piraí, já estava escuro, eu saltei e voltei para casa. Essa viagem foi tão marcante que passei a fazer registros ferroviárias das outras viagens”, explica.

Os registros no blog

Latuff começou contribuindo com fotos para o site Estações Ferroviárias, do Ralph Menucci. Em seguida, criou seu próprio blog para postar seus registros em textos, fotos, vídeos e  – o que faz toda a diferença – ilustrações. “O blog também resgata aquilo que existia no passado, a ilustração ferroviária. Algo que existia nos Estados Unidos, nos anos 1940, 1950, que eram postais colecionáveis de ferrovias, com ilustrações feitas por artistas. E isso me deu a ideia de resgatar um pouco essa tradição: ir aos lugares e não apenas fotografar, mas também desenhar, fazer registros artísticos de estações e trens. Isso se tornou um exercício artístico”, reflete.  

Enquanto morou no Rio, manteve o blog ativo. Sua familiaridade com o Estado, além da proximidade dele com Minas e São Paulo, possibilitou que ele sempre tivesse conteúdo novo para postar. Foi a mudança para Porto Alegre (RS), em 2013, que rompeu com isso.

“Aqui não tem a mesma malha ferroviária que o Rio de Janeiro e Minas, particularmente Minas, que é o estado do sudeste com a maior malha viária. Então, cheguei a fazer alguns ensaios, mas por uma série de outras questões, como a conjuntura política, eu acabei movendo meu foco. Mas eu não diria que desisti: o projeto está sempre em aberto, eu sempre posso fazer registros”, afirma.

Um outro problema inusitado e inesperado dificultou suas incursões fotográficas pelo Rio Grande do Sul. “O interior do estado é assolado por uma praga, que são os javalis. Isso torna a incursão no meio do mato mais arriscada. É um fenômeno que no Rio e em Minas eu não encontrava. E é um fator que limita um pouco”, acrescenta.

Um fã politizado

Uma charge político-ferroviária

Na charge, o cartunista critica o então presidente Nicolas Sarkozy e sua decisão de deportar ciganos da França, medida essa classificada pelo líder cubano Fidel Castro como um “holocausto racial”. A imagem remete as deportações em massa conduzidas pelos nazistas, que utilizavam vagões de carga para o transporte das pessoas, e ironiza os ideais da Revolução Francesa (“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”), trazendo também as cores da bandeira da França, 2010.

Para um artista acostumado a olhar o mundo pelo ângulo das charges políticas, conviver com o público que curte memória ferroviária é um desafio interessante. “De um modo geral, o sujeito que é aficcionado por trens ou ferromodelista tem um olhar crítico sobre o rodoviarismo, sobre como a política de favorecimento das rodovias, iniciada lá pelo Juscelino Kubitscheck, ajudou a destruir as ferrovias no Brasil. Mas não está interessado no debate político. Ele curte mais montar suas maquetes, suas miniaturas, a parte técnica. Existem também aficionados por trens que preferem não entrar no debate sobre privatização, sucateamento. Registram fotos de ferrovias, trens e estações, mas fica nisso”, avalia.

Latuff, entretanto, acredita que é impossível dissociar uma coisa da outra. “Não se pode falar de ferrovia sem falar de política. Não tem como. Por que, no Brasil, não se investe em ferrovia? Por que o transporte de carga não é majoritariamente feito por ferrovias? Por que não se investe no transporte ferroviário de passageiros? Por que não temos trens de alta velocidade? A resposta para tudo isso está na política”, assegura.

Para o cartunista, é possível entender todas as mazelas do Brasil observado as ferrovias. “Assim como Darcy Ribeiro falou que o ataque a educação no Brasil era um projeto, o mesmo pode se dizer das ferrovias: é um projeto”, denuncia Latuff, lembrando que o lobby do transporte rodoviário favorece a interesses importantes no país.

“O rodoviarismo criou os trustes, esse fenômeno do transporte rodoviário privado. E com isso se criou verdadeiras quadrilhas. Veja o envolvimento de políticos nele, por exemplo. O ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, que cumpre pena em Bangu, teve um esquema de corrupção envolvendo empresas de ônibus. As empresas de ônibus acabam se organizando em verdadeiras máfias. Em alguns casos, existe um monopólio. Então, existe um interesse de impedir o desenvolvimento das ferrovias”, critica.

O trem vai voltar?

Em algum lugar no passado de Minas Gerais OU Rede Mineira de Viação, 2017.

Latuff relata que, quando andava pelo país fazendo registros ferroviários, sempre ouvia a mesma pergunta: “o trem vai voltar?”. “Eu andei muito, conversei com muita gente, com ferroviários e moradores das margens das ferrovias e 99% deles, se não 100%, eram favoráveis ao retorno da ferrovia nos moldes do passado”, ressalta.

Com sua experiência de quem viajou pelo mundo e testemunhou a relação das ferrovias com o desenvolvimento dos países, ele acredita que as ferrovias não podem voltar nos moldes do que eram nos anos 1940, 1950. “Nós vivemos sob a égide da velocidade. Agora, nem de longe, o trem é anacrônico. A ferrovia não é anacrônica”, atesta.

Para ele, um exemplo é a China, que investe pesado em ferrovias. “Quando se fala em investimento em infraestrutura num país, não se pode descartar ferrovias. No Brasil é que acontece isso, porque ainda é uma colônia. Continua sendo uma colônia atrasada, que vê no trem uma coisa do caipira, do capiau, do roceiro, do ignorante, do atrasado. Esta é a visão que o Estado tem da ferrovia. Desde o Estado JK, que era modernoso, que era bossa nova, que queria trazer a modernidade. E a modernidade dele era o carro, era o asfalto”, critica.  

Outro exemplo, para o chargista, é a Europa, cortada por ferrovias que funcionam muito bem. “No Brasil, o trem de passageiros pode voltar, pode ser ágil. O problema é que isso colocaria em cheque o lobby das empresas de ônibus. Com um trem confortável e veloz, quem vai querer pegar engarrafamento nas rodovias?”, questiona.

Ele lembra que, nos tempos da Rede Ferroviária Federal S/A, a passagem do trem era mais barata do que a do ônibus. “No momento em que a ferrovia foi privatizada, o preço se equiparou ao ônibus e, em alguns casos, ficou mais caro do que o do ônibus no Rio de Janeiro. Existe um interesse de impedir o desenvolvimento das ferrovias. Eu digo sem nenhum medo de errar: o Estado brasileiro é inimigos das ferrovias”, denuncia.

Latuff, em uma expedição ferroviária pelo interior do Paraná, em Campinas Belas, em 2013. Foto: Maria Lu Pereira.

* Najla Passos é mineira, jornalista, mestra em Linguagens e Literatura Brasileira e diretora-executiva do Notícias Gerais. Publica a coluna Trem de Minas todos os sábados.

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