João V. Bessa *
Na manhã da última segunda, as buscas no Google por “O bêbado e o equilibrista” atingiram seu pico de popularidade em 12 meses. Isso mostra como a internet reagiu à notícia da morte do compositor brasileiro de virtude Aldir Blanc, vítima do novo coronavírus. “Quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças”, disse seu parceiro João Bosco.
Eternizada na voz de Elis Regina, essa canção se tornou um símbolo da luta pela Lei da Anistia, contra o governo dos militares que perseguiam, prendiam, torturavam e matavam opositores. É um dos sucessos de “Linha de passe” (1979), junto a “Boca de Sapo” e à faixa que dá nome ao disco. Ao longo de duas décadas, Aldir Blanc e João Bosco compuseram clássicos que embalaram os sonhos de gerações de ouvintes.
O carioca, nascido em setembro de 1946, começou a compor aos 16 anos de idade. Chegou a atuar como médico psiquiatra, abandonando o ofício em 1973. Antes disso, concorreu a dois Festivais da Canção. Quando Elis Regina gravou “Ela” (1971), mudou para sempre a carreira de Blanc: no ano seguinte, “Agnus Sei” saiu no lado B de um compacto do jornal O Pasquim. Do outro lado estavam Tom Jobim e a própria Elis, com “Águas de Março”. Logo depois o virtuoso violonista lançou seu álbum de estreia. O resto virou história.
As homenagens a Blanc surgem à medida que circula a notícia de sua morte. Enquanto não pudermos nos reunir e cantar “O bêbado e o equilibrista”, “Boca de Sapo” e tantas outras, os textos, as reportagens e as mensagens ajudam a manter viva a memória. Esse é o objetivo da coluna de hoje. Reconheço que muito foi dito em relação à obra do poeta, inclusive por pessoas mais capacitadas que eu. Portanto, hoje escrevo sobre uma obra específica, de uma perspectiva pessoal: “Mestre sala dos mares”.
O “navegante negro” louvado nesses versos foi na verdade um almirante, João Cândido, líder do motim que ficou conhecido como a Revolta da Chibata de 1910. Em sua carreira militar, Cândido participou da Revolução Federalista do Rio Grande do Sul (seu estado de origem) ainda aos treze anos de idade. Na Marinha, serviu por quinze anos, viajando por todo o mundo, participando de batalhas, subindo e descendo a rígida hierarquia da instituição.
Em novembro daquele ano, Cândido liderou cerca de 2 mil marinheiros (de maioria pretos e pardos) em um levante contra as punições impostas pela Marinha do Brasil aos “insubordinados”: a prisão solitária ou dezenas chicotadas. Como narra a canção: “Rubras cascatas jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas”. Tomando os navios de guerra, os marinheiros exigiam o fim de tamanha violência e ameaçaram atear fogo ao Rio de Janeiro, caso não fossem atendidos. O governo da época prometeu um acordo, anistia, mas não cumpriu com sua palavra. Todos foram presos. João Cândido, expulso da corporação, faleceria 59 anos depois, vítima de câncer.
Poucos anos após a morte do marinheiro, Aldir Blanc e João Bosco compuseram “O almirante negro”, que podemos enxergar como uma forma de manter viva a memória de Cândido e acesa a chama da luta contra as violências e as injustiças. Os censores da ditadura, no entanto, não gostaram nem um pouco disso, não queriam autorizar a comercialização de uma obra artística que louvava um homem negro subversivo que enfrentou a hierarquia da instituição. “Foi a maior demonstração de racismo que já vi”, comentou Blanc à Folha de S. Paulo.
Por insistência dos censores, o compositor foi obrigado a mudar alguns versos e o próprio título do poema, que passou a ser “Mestre-sala dos mares”. A canção alcançou grande sucesso ao ser interpretada pela impávida voz de Elis Regina, que por sua vez tinha o poder de estabelecer clássicos da MPB. Na voz de João Bosco, foi lançada no álbum “Caça à Raposa” (1975), o mesmo das memoráveis “Kid Cavaquinho”, “De frente pro crime” e “Escadarias da penha”.
Essa não foi a primeira vez que a instituição militar perseguiu quem ousou tocar no nome de João Cândido como homenagem. Por exemplo, em 1934, o Barão de Itararé foi sequestrado depois de publicar duas reportagens sobre o almirante no jornal “Folha do Povo”. A atitude se repetiu durante a ditadura do Estado Novo, com o jornal “A Manhã”. Atualmente, o almirante negro tem como monumento uma estátua erguida na Praça XV, na capital fluminense.
O carnaval, o futebol, a religião, a comida; as ruas, as paisagens e a gente: a cultura brasileira foi a principal matéria prima do compositor e cronista Aldir Blanc. Suas canções serviram não apenas para “embalar sonhos” e noites de amor, mas também para reavivar a memória histórica. Por isso adquiriram tamanha importância. Viva a poesia de Aldir Blanc! “Glórias a todas as lutas inglórias que, através da nossa história, não esquecemos jamais”.
* Estudante de Jornalismo e guitarrista, se dedica ao estudo do papel da música na construção das subjetividades pretas brasileiras. Fluminense, nasceu em Cordeiro. Contato: jvbessajor@gmail.com / Twitter: @jvbessa