Início Opinião CRÔNICA: MINHA MÃE, DONA MARIA

CRÔNICA: MINHA MÃE, DONA MARIA

André Frigo
Notícias Gerais

Minha mãe escolheu lutar. Ela poderia ter se resignado quando os sonhos do futuro da família desapareceram na poeira vermelha do planalto central. Poderia ter desistido quando teve que atravessar o país com quatro filhos sem idade para entender o que estava acontecendo na volta para sua cidade. Poderia ter deixado se levar pelo desespero quando dividiu esses filhos pelas casas de avós e tios porque a família ainda não tinha uma casa. Poderia ter enlouquecido na casa alugada de cômodos acanhados e quartos com infiltração. Porém ela lutou suas batalhas – sem armas e sem gritos de guerra.

Minha mãe transformava as carências do dia a dia em algo carregado de fantasia. Quando faltava dinheiro para o pão, ela fazia bolinhos e os servia contando histórias da sua infância em Ibitutinga, quando eles eram feitos nos dias das chuvas ininterruptas do verão. E a gente se reunia diante da vasilha com aqueles quitutes feitos de farinha, ovo, fermento e leite. De formas variadas, cobertos de açúcar refinado e canela, transportavam a gente no tempo e no espaço.

Dona Maria nos embalava, aliviava nossas angústias com cafunés e palavras. Nesses momentos, fez nascer em mim a paixão pela literatura, falando dos livros da sua vida que foram lidos sob a luz de lamparina. Não sei quantas vezes escutei a famosa lista: “Verão de um lobo vermelho”, “Castelo de um homem sem alma”, “Por quem os sinos dobram”, “E o vento levou”, “Rebeca” e a famosa história “Dos Apeninos aos Andes” que ela havia lido na coleção Tesouro da Juventude. Lógico que li todos. Lógico que criei minha lista.

Nosso Natal começava com o cheiro de figo fervendo no tacho de cobre na calda de açúcar com pedaços de canela. O aroma tomava a casa por três dias, até o doce ir para os vidros, com os figos marcados por um verde vivo e brilhante. Depois era a vez da compota de pêssego. Uns pêssegos pequenos, meio verdes, que depois de prontos ficavam cor de caramelo, numa mistura ácida e doce ao mesmo tempo. E os biscoitos de araruta com formatos de árvore de natal, bota, cometa, pato, estrela, cobertos com glacê de açúcar e confeitados? O vidro repleto de formas e cores em cima da geladeira era a própria magia natalina.

Minha mãe não pôde estudar tudo que o queria, faltava dinheiro e sobrava um pai autoritário que achava que ela e tia Alda não precisavam tanto de estudo. Passados 40 anos, a falta de dinheiro ameaçava os estudos dos filhos. Foi nessa época que, na acanhada cozinha da nossa casa, passou a produzir lasanhas e canelones em tabuleiros que minha mãe fazia questão de entregar assados. O fogão de quatro bocas ficava tomado pelas panelas de molho de tomate, molho branco e frango cozido.

Domingo começava com a água fervendo para cozinhar a massa que ela mesma fazia. A gente era acordado cedo, independente da hora que fosse dormir, para ajudar na produção. O nosso dia de descanso começava ao meio dia, depois de fazer todas as entregas. Mas no final do mês garantia a quitação das mensalidades das escolas.

Dona Maria tem uma força silenciosa, resistente e persistente. Quando revejo nossa vida, penso em todos os momentos que ela poderia simplesmente ter desistido, se deixado levar e se refugiado em desculpas. Entretanto, ela sabia que não lhe cabia desistir. E não desistiu. Nessa nossa vida conturbada, cheia de idas e vindas, foi nos empurrando, puxando pela mão, nos arrastando com suas palavras e não deixou nenhum filho para trás. Nos deu sentido de família, nos deu histórias para contarmos, nos deu lembranças para vida inteira.

Aos 89 anos enfrenta, como todos nós, essa guerra contra o coronavírus. Ciente da sua fragilidade diante da doença, sabe que o poder está na paciência e na serenidade para enfrentar esses dias de reclusão. A experiência de quem atravessou quase um século lhe dá a convicção de que em breve vai poder tomar café em uma mesa repleta de pães, geleias, bolos, biscoitos, cercada pelos filhos e netos. Eu vou controlando minha ansiedade, mas louco para vê-la abrindo a porta da casa e ouvi-la falar: “que bom que você veio meu filho!”

A história de minha mãe com certeza é a mesma de milhares de mães que enfrentaram mordaças e controles sociais. (A história de minha mãe é a mesma) De mulheres que superaram regras – não escritas – do que elas podiam fazer ou do que poderiam ansiar a ser. De lutar ao seu modo pelo lugar de direito da mulher em uma sociedade machista e injusta. De saberes ancestrais e aprendidos no dia a dia. Mulher resiliente, que sempre soube nos surpreender. Como o fato de recentemente começar a escrever poemas, de mostrar sua voz ao mundo. Encerro a crônica com minha mãe declamando:

Tenho quatro amores únicos

Indivisíveis, multiplicados,

Diferentes e iguais

Me fazem sentir poderosa

Na minha pequez

São minha luz, minha âncora,

Meu porto seguro.

Sinto suas presenças

Nas ausências

Nas tormentas da vida

Nos dias de calmaria.

Estão sempre por perto

Emoções contidas

Nem por isso menos intensas

O tempo passou na janela

Não vi, não quis ver

Não importa

Pois crianças sempre serão!

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