André Frigo
Notícias Gerais
O sujeito era uma figuraça. Dizem que era do tempo em que ainda não se mentia no currículo lates. Nunca soube muito sobre ele, apenas o conhecia de vista. Nunca conversamos, sequer nos cumprimentamos. Eu sabia de sua existência por conta de sua mania de ir a todos os velórios na cidade. E devido a sua figura, o reconhecia nas portas dos bares, sempre solitário e parecendo somente observar o que acontecia a sua volta.
Os bares ficavam geralmente localizados nas extremidades da parte histórica da cidade, no caminho para o bairro do Tejuco. Eram desses estabelecimentos que geralmente reúnem homens no final do trabalho, que bebem em pé encostados no balcão enquanto conversam animados sobre tudo. Mesmo nesses locais mantinha sua indumentária composta do paletó em tons de cinza e gravata. Mas essa não é uma crônica sobre bares.
O que nele chamava mesmo atenção era sua fixação pelos velórios. Tenho a impressão de que ele ia a todos. Chegava sempre perto do final, quase na hora de sair o enterro. Ficava por ali, rondava, cumprimentava um ou outro, mas no geral ficava em um canto, esperando a hora marcada para o morto ser levado para o cemitério. Quando as preces terminavam e o caixão era fechado, ele imediatamente pegava uma coroa de flores e saia a frente do cortejo.
Habituado, sabia exatamente a velocidade ideal que o momento solene exigia. Encabeçando a procissão, carregando uma pesada coroa de flores aleatória, ditava o ritmo com passadas ritmadas. Bem informado, parecia sempre saber onde o morto seria sepultado. Talvez se guiasse pelos toques do sino da igreja onde ocorreria a missa de corpo presente. No templo, sabia o local onde deveria postar a coroa enquanto a liturgia acontecia. Permanecia no seu posto, discreto, contrito e aguardando a próxima etapa.
Terminada a missa solene, ele se adiantava e já de posse da coroa de flores, aguardava enquanto os parentes e amigos do morto empunhavam o caixão. Quando percebia que estavam todos prontos, comandava de novo a caminhada rumo ao cemitério. Tenho a impressão de que ele sempre sabia qual seria a cova destinada para aquele determinado defunto. Chegava lá sem hesitar e se posicionava em um local onde podia observar toda a solenidade.
Ao final, quando o ataúde já estava na cova e os parentes já haviam jogado flores e pás de terra, ele atravessa solene a pequena distância que o separava da cova, depositando em seguida a coroa. Enquanto os parentes e amigos ainda trocavam abraços nosso personagem ia se afastando discretamente, talvez com a certeza do dever cumprido. No rosto, sua expressão continuava séria, compenetrada, como exigiam as regras desses momentos.
Entretanto, mudanças nos hábitos sociais foram atropelando a rotina desse habitué de velórios. De uma hora para outra, ao invés das penosas caminhadas até o cemitério, as pessoas começaram a se deslocar de carro. O caixão seguia a frente, no carro da funerária, onde iam também todas as coroas de flores enviadas para homenagear o morto e sua família. Começaram a ficar raros os momentos em que seus préstimos de condutor da procissão do enterro se faziam necessários.
Já quase não o via mais, exceto por um ou outro enterro em que as pessoas ainda seguiam a pé. Mas eram momentos cada vez mais raros. Ainda o via vez ou outra nos bares, mas não sei se era impressão minha, seu rosto expressava uma certa angústia. Acredito que ele não estava preparado para aquela mudança em sua rotina de vida. Penso, inclusive, que ele desgostava daquela falta de solenidade que era levar um morto para sua morada final apressadamente, no ritmo ditado pelo rabecão e não pela passos solenes. A pé era possível, também, ouvir os murmúrios, os choros e as preces das pessoas que acompanhavam. De carro, apenas o barulho dos pneus e dos motores.
De repente passei a não ver mais nosso personagem. Nem nos bares e muito menos nos velórios. Ainda perguntei aqui e ali, mas entre meus conhecidos ninguém dava notícias dele. Alguns chegavam mesmo a duvidar de sua existência. Acredito que ele tenha falecido, não tem como eu afirmar, mas acredito nisso. Fico pensando como teria sido seu enterro, se teve alguma coroa de flores, se alguém prestou as homenagens que ele merecia.
E esses tempos de Covid-19, de enterros sem velórios e sem família, com os corpos sendo levados diretamente dos hospitais para as sepulturas seriam um choque terrível para ele. Não sei como ele lidaria com essa impossibilidade de fazer as honras para mais um desconhecido. Ou com esses velórios de tempo limitado, com a presença de poucos familiares. Talvez soasse para ele como sinal do fim dos tempos. Possivelmente estaria assistindo a esses enterros relâmpagos e pensando onde vamos parar. Ninguém sabe meu amigo, ninguém sabe.