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CRUZ E SOUZA, O POETA QUE VIVEU E MORREU À MARGEM DOS TRILHOS

Najla Passos *

O grande poeta brasileiro João da Cruz e Souza hoje dá nome a ruas, escolas, bibliotecas e à cadeira de número 15 da Academia Brasileira de Letras (ABL). Ocupa os cânones literários internacionais ao lado dos outros dois maiores simbolistas da história: Mallarmé e Stefan George. Mas, enquanto estava neste mundo de desigualdades, não teve louros, nem paz. Viveu e morreu literalmente às margens dos trilhos do seu tempo.

Negro retinto em uma sociedade escravocrata, nunca conseguiu espaço para colocar sua grande erudição e conhecimento a serviço daquele Brasil colônia que tanto carecia de talentos. Viveu na miséria, trabalhando em cargos mal remunerados da Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB). O trabalho árduo ali o levou à tuberculose. Morreu aos 36 anos no antigo sanatório de Antônio Carlos (MG), em frente ao entroncamento do trilho para qual dera à vida com a Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM).

E mesmo depois da morte, sua história voltou a cruzar com a da ferrovia que foi o símbolo do progresso e da modernidade no país que não lhe dera espaço: foi transportado no vagão de gado para ser enterrado, no Rio de Janeiro, pelos amigos que se juntaram numa vaquinha. Mas ainda ecoam suas ‘vozes veladas, veludosas vozes’ de musicalidades e denúncia de uma sociedade em que não havia espaço para o negro.

Uma história atípica em SC

Filho de escravos alforriados, João da Cruz e Souza nasceu em Nossa Senhora do Desterro (SC), em 24 de novembro de 1861. Recebeu uma educação formal de alto padrão do antigo proprietário de seus pais, o marechal Guilherme Xavier de Souza, cuja esposa não tinha filhos e apadrinhou o garoto. Aprendeu francês, inglês, latim e grego. Aluno brilhante do Liceu da cidade, foi discípulo do professor naturalista Fritz Muller.

Leu os grandes autores do seu tempo, nas línguas de origem. Conheceu o país viajando com a companhia Dramática Julieta dos Santos e envolveu-se nos grandes debates públicos de sua época: editou e escreveu para vários jornais abolicionistas. Lutou contra o preconceito. Mas apesar da cultura erudita, foi recusado como promotor de Laguna por ser negro.

Em 1890, acabou se mudando para a capital, o Rio de Janeiro, em busca de melhores oportunidades. Publicou Missal, depois Broquéis, tornou-se poeta. Tornou-se grande. Mas continuava miserável.

Já casado com Gavita Gonçalves, também negra, conseguiu emprego na Central do Brasil, onde desempenhou funções ditas “menores” pelos seus pares, como a de arquivista. Passava sempre por graves problemas financeiros. Teve quatro filhos. Todos eles morreram precocemente de tuberculose. A esposa ficou louca. Ele seguiu lúcido, sofrendo com o preconceito e a desigualdade de oportunidades do seu tempo.

A morte em Antônio Carlos

Em 1897, Cruz e Souza já não tinha mais forças para lutar pela vida. As tragédias e a tubercolose acabaram com seu brio. Por recomendação dos amigos, se mudou para Sítio (MG), famoso pelo clima ameno, propício ao tratamento dos tuberculosos. No sanatório da cidade, viveu seus últimos dias olhando a ferrovia, sem arriscar novas produções. Morreu no dia 19 de março de 1898, aos 36 anos.

“Infelizmente, Antônio Carlos ficou conhecida pela morte de Cruz e Souza. Não pela vida”, afirma o historiador antoniocarlense Norberto José de Souza, que lamenta a passagem rápida e trágica do grande poeta pelo local. “Ele já chegou a Antônio Carlos muito debilitado. Não se tem registro de nenhuma produção intelectual dele por aqui”, reforça ele.

O historiador explica que, à época, o local era conhecido como Bias Fortes, um distrito de Barbacena que, mudou a alcunha para Sítio naquela época e só muitos anos mais tarde, em 1948, seria alçado à município e batizado de Antônio Carlos. “Era a época de esplendor do lugar, que experimentava um grande progresso em função de abrigar o entroncamento das ferrovias e, também, do seu clima ameno. Clima que, por sinal, foi o que levou o poeta a buscar a cidade”, esclarece.

Cortado pela Serra da Mantiqueira, a o local situa-se a 1.040 metros de altitude. Seu clima saudável fez com que ali se mantivesse por algum tempo o Sanatório Mantiqueira, estabelecimento hospitalar, destinado ao tratamento de doenças do aparelho respiratório, extinto em 1954.

Ecos do antigo sanatório

O sanatório em que Cruz e Souza morreu foi construído para funcionar como hotel de luxo para as personalidades que pernoitavam em Antônio Carlos para fazer a baldeação entre as ferrovias. Não por acaso, o antigo Hotel Coelho é o maior símbolo da cidade que teve seu esplendor com a chegada dos trens, e o perdeu com s suspensão dos vagões de passageiro.

Tombado como patrimônio histórico pelo Decreto Municipal n° 23/2003, a edificação corre sérios riscos devido ao mau estado de conservação. Nela, hoje, funcionam empreendimentos diversos: um pub conjugado com uma barbearia, uma academia de ginástica e uma oficina mecânica. O espaço em que situam-se o bar e a barbaria, cujo acesso é feito pela porta principal, está em bom estado, bem pintado e aparentemente melhor cuidado.

Foi ali que Marcelo Francisco Rosa montou seu negócio em meio à pandemia da Covid-19. Trata-se de um bar, estilo pub, conjugado com uma barbearia. Passou aperto para se manter enquanto durou o período de isolamento social mais rígido. Agora, os clientes começam a aparecer, tanto para um quanto para o outro negócio. “Muita gente sabe que o casarão é histórico e vem conhecer, perguntar pelo Cruz e Souza e outros detalhes do antigo sanatório”, conta ele.

Outras partes do prédio assustam. “O mau estado de conservação do antigo Hotel Coelho é reflexo dos outros grandes patrimônios da região. A Fazenda do Registro Velho, que pertenceu ao inconfidente Claudio Manoela da Costa, aqui perto, na divisa com Barbacena, está em ruínas. A Fazenda do Gado, que recebeu as primeiras espécies de gado holandês do país, também está abandonada”, conta Norberto.

De acordo com ele, depois de emancipada, Antônio Carlos entrou em declínio e nunca mais se reergueu. “A única esperança é a reativação do trem turístico, um projeto que não interessa aos poderosos que lucram com o transporte rodoviário”, sintetiza Norberto.

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