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TREM DE MINAS: O QUE ACONTECE QUANDO AS CRIANÇAS, OS LOUCOS E O MITO SE REÚNEM NA ESTAÇÃO?

Montagem feita a partir das fotos de divulgação do espetáculo Ser Minas Tão Gerais

Najla Passos *

Uma cidade habitada por crianças e loucos, que todos os dias se reúnem na estação para esperar a volta de uma entidade que partiu no trem, a tantos anos atrás, que ninguém mais sabe sequer se conseguirá reconhecê-la. Este é o mote do inesquecível espetáculo Ser Minas Tão Gerais, a maior produção já realizada pelo Grupo Ponto de Partida, com a participação do coral dos Meninos de Araçuaí e do grande cantor e compositor Milton Nascimento.

Um musical que conciliou tão bem os símbolos da mineiridade que a fez universal o suficiente para encantar o Brasil e mundo. Nas palavras que o ator do grupo barbacenense, Ronaldo Pereira, 34 anos, encontrou para parafrasear Milton, “é o espetáculo que mostrou a vocação do Ponto de Partida para ser uma plataforma de chegadas e partidas, de encontros e despedidas”.

“Ser Minas tão Gerais é o espetáculo que mostrou a vocação do Ponto de Partida para ser uma plataforma de chegadas e partidas, de encontros e despedidas”

Ronaldo Pereira, ator

A novidade é que o Brasil não é só litoral

Tudo começou em 2012, quando o Ponto de Partida recebeu um convite inusitado da Cemig, a Companhia Elétrica de Minas Gerais: produzir um espetáculo em homenagem a Milton Nascimento em apenas 40 dias. A proposta inicial era que se resumisse a quatro apresentações, com o compositor de voz única cantando uma de suas músicas ao final.

Desafio aceito, o grupo mergulhou na obra do Milton e começou a criar as histórias e os personagens da peça. A diretora da companhia, Regina Bertola, apostou na sonoridade da poesia de Carlos Drummond de Andrade para conduzir a narrativa. “Os poemas do Drummond, assim como a música do Milton, têm uma sonoridade que capta o passar do trem, da locomotiva. Foi um casamento muito feliz”, avalia Ronaldo.

Alinhavado o roteiro, definidos alguns personagens, o grupo seguiu para Belo Horizonte, onde se reuniria com Milton Nascimento, no Hotel Othon, para acertar os detalhes do espetáculo. Mas enquanto aos diretores conversavam com ele, os demais atores, já incorporados aos seus personagens, se escondiam pelas salas do hotel.

Ao sinal de Regina, irromperam a reunião cantando “Notícias do Brasil”.

“A novidade é que o Brasil não é só litoral / É muito mais é muito mais que qualquer Zona Sul”

Milton Nascimento e Fernando Brant

O compositor ficou fascinado. Perguntou se havia mais. E os atores entoaram uma sucessão de canções previstas para o repertório. Milton Nascimento, então, não se conteve. Pediu para ter uma participação maior no musical do que apenas cantar uma música no final. Mas Regina foi categórica: “Tudo bem, mas se quiser atuar, vai ter que ensaiar”!

Tem gente que veio pra ficar

Foi assim que Milton Nascimento aportou em Barbacena para passar uma temporada e iniciou a parceria com o grupo, que dura até hoje e já colheu outros frutos no quintal, como a criação da Bituca – Universidade da Música. “Com a convivência nos ensaios e, depois, nas viagens da temporada, nos tornamos todos amigos. O Milton adora vir para Barbacena porque aqui ele se sente em casa”, conta Ronaldo.  

Com seu jeitinho doce e encabulado, durante a montagem do espetáculo, ela ia cavando uma participação cada vez maior para seu personagem. “’Ah, nesta música eu ainda não entrei ainda, né, Regina?’, ia dizendo… e ela respondia: ‘Isso aqui é teatro, Milton. Deixa que eu dou um jeito’”, recorda o ator.

Desses momentos de intimidade com um dos maiores mitos da música brasileira, os atores guardam histórias felizes. Ronaldo ficou especialmente impressionado com o quanto Milton reverencia o trem, tema mais do que recorrente em sua obra.

Ronaldo Pereira (à direita), com o mito Milton Nascimento e o músico Pitágoras Silveira, menino de Araçuaí que também estreiou no palco em Ser Minas Tão Gerais. Foto: Arquivo pessoal.

“O Milton é fissurado pelo trem, ama o trem…. Ele estava hospedado na casa do Pablo Bertola, ali na Praça Santos Dummond, em Barbacena. E quando o trem passava, ao longe, nos pedia silêncio para poder ouvi-lo melhor”, exemplifica.

O ator compreende bem o sentimento. “O Milton não gosta de trem à toa não, é lindo mesmo. O trem tem musicalidade, tem continuidade. E ainda tem o apito que é uma coisa que está dentro de nós, mineiros. Quando a gente escuta aquele apito, sabe que tem alguma coisa chegando, alguma coisa indo embora. O trem é um anúncio, assim como os sinos das igrejas”, teoriza.

Maria Fumaça não canta mais

Em meio a sequência de ensaios, os meninos e Araçuaí ouviram Milton cantar “Ponta de Areia” e se reconheceram na história narrada pela música. “Ei, moço, essa Maria Fumaça aí da música passava lá em Araçuaí e ia até a Bahia. Minha vó me contava essa história, mostrando a estrada de terra que já havia sido trilho de trem”, teria contado um deles.

A narrativa, surgida de forma tão espontânea, comoveu o compositor que tão bem registrou a nostalgia causada pela ausência do trem. Um sentimento comum à população de Barbacena que, durante a Ditadura Militar, assistiu à Maria Fumaça se despedir da cidade e da região. O episódio envolvendo os meninos de Araçuaí acabou entrando para o espetáculo. E se tornou um dos momentos mais emocionantes dele.

“Ponta de areia, ponto final / Da Bahia à Minas, estrada natural / Que ligava Minas ao porto, ao mar / Caminho do ferro mandaram arrancar”

Ponta de areia, Milton Nascimento e Fernando Brant

Tudo acontece na plataforma

Na música “Roupa Nova”, Milton Nascimento conta a história de Pinduca, o personagem que, “Todos os dias, toda manhã / Sorriso aberto e roupa nova / (…) Ouve o apito, sente a fumaça / E vê chegar o amigo trem”. E no espetáculo Ser Minas Tão Gerais, Pinduca ganhou vida na interpretação do ator Felipe Saleme.

Como a temporada se estendeu para muito além do previsto, o ator não pode continuar no elenco. E foi aí que Ronaldo Pereira foi convocado a assumir a tarefa de contracenar com Milton Nascimento em uma das passagens mais marcantes do espetáculo.

“Eu fiquei super nervoso. E era uma cena em que ele ficava nervoso também, porque fazia como ator e porque ele já tinha uma segurança com o Felipe. Mas o primeiro ensaio foi divertidíssimo, eu brinquei muito, ele riu pra caramba”, diz.

Em cena, o mito e Pinduca – personagem que passou a vida indo a estação esperar a entidade que lhe deu de presente um chapéu e prometeu que um dia voltaria. Foto: Divulgação / Ser Minas Tão Gerais

“Todos os dias, toda manhã / Sorriso aberto e roupa nova / Passarinho preto de terno branco / Pinduca vai esperar o trem”

Roupa Nova, Milton Nascimento e Fernando Brant

Mesmo próximo ao ídolo que virou amigo, Ronaldo pondera que vê-lo cantar é sempre muito impressionante. “O Milton cantando é uma luz com a qual nunca ninguém vai acostumar. O Caetano Veloso e o Chico Buarque falam isso: ‘É o Milton, a Maria Bethânia e mais ninguém””, acrescenta.

Sobre a parceria que guarda dentre as melhores memórias de sua história, ressalta a generosidade do grande compositor de coração mineiro. “O Milton é um dos maiores ídolos de toda uma geração e, ao mesmo tempo, é muito tímido. Mas mesmo assim está sempre muito aberto para tudo. Se você parar pra ver, na carreira do Milton, ele gravou com muita gente”, observa.

Sou o mundo, eu sou Minas Gerais!

Quando o Ponto de Partida foi criado, há 40 anos, Regina e Ivanée Bertola convidaram um diretor de teatro famoso, do Rio de Janeiro, para vir à Barbacena avaliar o potencial do grupo. E reza a lenda que o diretor se emocionou, adorou o que viu, mas achou que a temática não era “universal” o suficiente para encantar os grandes centros culturais brasileiros.

“Não sei se isso vai interessar ao público do Rio e de São Paulo”, teria dito ele. E Regina, então, rebateu: “Quem disse que queremos Rio e São Paulo? Nós queremos o mundo!”, profetizou.

Ser Minas Tão Gerais proporcionou ao grupo conquistar este sonho. O musical ficou em cartaz por mais de uma década, foi visto por milhares de pessoas em todo o mundo e continua no cardápio do Ponto. Mesmo falando em português de sentimentos tão mineiros, como a memória dos trens, e mais ainda barbacenenses, como a convivência com os loucos, o espetáculo emocionou o Brasil e o mundo.

“Quando estávamos sendo aplaudidos no Théâtre Champs-Élysées, em Paris, foi que nos demos conta disso. Foi incrível”, lembra Ronaldo, que viajou o mundo junto a essa verdadeira trupe: os doze atores do Ponto de Partida, Milton Nascimento, os seis músicos da banda e os 40 meninos de Araçuai.

Os tambores de Minas soarão

De acordo com ele, a decisão de falar e cantar em português já havia sido tomada lá no passado, no início do grupo, quando Ronaldo ainda nem sonhava ainda em se tornar parte dele. “Para o Ponto de Partida, sempre foi fundamental fazer um teatro brasileiro e original. E não sair de Barbacena”, ressalta.

Isso fica claro em Ser Minas tão Gerais, que escancara uma mineiridade real e pouco reconhecida pelos livros de histórias escritos por mãos brancas. No espetáculo, o som dos tambores dos escravos que para cá vieram extrair o ouro das Minas fala alto e se mistura aos barulhos do trem, em uma simbiose impressionante, compondo o musical descrito como “brasileiro, mineiro, negro, mestiço, universal”.

“Bate forte até sangrar a mão / E batendo pelos que se foram / e batendo pelos que voltaram / Os tAmbores de Minas soarão / Seus tambores nunca se calaram”

Os tambores de Minas (Minas Drums), Milton Nascimento e Márcio Borges

Tem gente que vai pra nunca mais

A última apresentação de Ser Minas ocorreu em Barbacena, em 2015, durante a festa de comemoração da inauguração da Estação Ponto de Partida – o prédio da antiga fábrica de seda da cidade, a Sericícola, segunda do gênero na América do Sul, que o grupo ocupou e transformou em um centro cultural mais belo e grandioso do que Barbacena jamais havia sonhado.

Na primeira das três noites de festas, o espetáculo foi apresentado na parte externa, para um público de duas mil pessoas. “Quando nós estávamos cantando Ponta de Areia, a luz caiu e ficamos no escuro, sem microfones. Mas todo mundo continuou a cantar e, quando vimos, a plateia começou a iluminar o local com as lanternas dos celulares. E foi incrível quando, em uma virada da bateria, a luz voltou a iluminar o palco”, relembra.

As emoções da noite foram muitas e afetaram profundamente a atriz Lourdes Araújo, outra das fundadoras do grupo e personagem de tantas histórias encantadoras. Na peça, ela encarnava a Mariinha que, ao lado do colega Lido Losch, que representava o Veveco, contracenava com Milton em uma cena ontológica.

“Quero que a justiça reine em meu país / Quero a liberdade, quero o vinho e o pão / Quero ser amizade, quero amor, prazer / Quero nossa cidade sempre ensolarada / Os meninos e o povo no poder, eu quero ver”

Milton Nascimento e Fernando Brant

No final do espetáculo, muito emocionada, se sentiu mal e precisou-se sentar em um banquinho, no fundo do palco, enquanto soavam os aplausos. Ela pediu para tirar o figurino e ir para casa, mas não deu tempo: foi levada ao hospital. Lourdinha não resistiu e morreu naquela mesma noite, da forma que sempre sonhou: atuando.

Na madrugada, quando os membros do grupo não sabiam o que fazer com o restante da programação, a filha dela, Carol Damasceno, telefonou para dizer que a família tinha se reunido e concluído que, se a mãe tivesse viva, não ia querer que a festa acabasse. “Nós estávamos todos destruídos. Então, nossos amigos produtores, iluminadores, cenógrafos, que vieram do Brasil inteiro para a inauguração, assumiram o controle de tudo e a festa continuou”, lembra.  

A plataforma desta estação é a vida deste meu lugar

Ronaldo Pereira acredita que a imagem do trem tem tudo a ver com a história do Ponto de Partida, o grupo que ganhou o mundo, mas optou por seguir em sua cidade natal. “Barbacena está no meio do caminho, no meio dos grandes centros. Os espetáculos, as artes, sempre passavam por aqui, mas nunca paravam. E isso incomodava muito”, analisa o ator.

Segundo ele, a criação do grupo, em 1980, mudou esse quadro. “Quando o Ponto começou, na década de 1980, era mais um grupo de mobilização cultural do que de teatro. Naquela época, trouxe Gonzagão, Elba Ramalho, Quarteto em Cy, Nara Leão, Carlinhos Lira, trouxe o pessoal que tava começando. E os escritores, Bartolomeu, Afonso Romano de Santana, Adélia Prado… tinha isso tudo e ainda tinha um suplemento cultural que falava sobre a memória arquitetônica que Barbacena perdeu. Nós somos mais antigos do que a cidade de Tiradentes e não temos mais nada disso. E até a arquitetura dos anos 1970 também já se perdeu”, reflete.

Com o tempo, o grupo passou a levar Barbacena para o mundo também. E junto com ela, seus personagens, sentimentos e histórias.”Esta questão de colocar os loucos em Ser Minas é uma homenagem à cidade. Porque os manicômios foram um trauma para todos os barbacenenses, mas estão ligados à nossa memória, não há como fugir. E nós tratamos disso de forma bem humorada e poética”, pontua.

Segundo ele, não foi por acaso que, quando conquistou seu espaço para atuação, na Sericícula, o grupo o batizou de Estação Ponto de Partida.  “Nós estamos comemorando 40 anos de estrada em uma cidade do interior de minas, que muita gente reclama que não tem nada, que politicamente é difícil, e a gente conseguiu não só se manter, mas conquistar o respeito e a admiração de todos”, avalia.

No musical Ser Minas Tão Gerais, assim como na música de Milton e na história do Ponto de partida, a imagem do trem é protagonista e fio condutor. “Quando o Milton canta Encontros e Despedidas, nós chegamos a formar um trem no palco. Uma cena emocionante que mostra o quanto ele é imprescindível para a música para a nossa cultura e para nossa história”, resume Ronaldo.

“Todos os dias é um vai-e-vem / A vida se repete na estação / Tem gente que chega prA ficar / Tem gente que vai / Pra nunca mais”

Encontros e despedidas, Milton Nascimento e Fernando Brant

* Najla Passos é mineira, jornalista, mestra em Linguagens e Literatura Brasileira e diretora-executiva do Notícias Gerais.

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