Início Opinião Coluna A SENSIBILIDADE DE SOCORRO NUNES, EM VERSO E PROSA

A SENSIBILIDADE DE SOCORRO NUNES, EM VERSO E PROSA

Socorro Nunes *

Vamos conversar?
(Conto inédito)

Véspera de Natal, tarde escaldante. O centro da cidade fervilha, pessoas apressadas em todas as direções avançam o sinal. Ecos de buzinas se misturam a ruidosas conversas de ambulantes na Praça Sete, ao silêncio dos jogadores de dama e aos gritos estridentes de anunciantes de lojas disputando consumidores ávidos por promoções. O topo do Pirulito reluz ofuscando o brilho dos vestidos de festa expostos para aluguel nas vitrines. De repente, para de caminhar, suas pernas travam, a garganta e a boca secas, respiração desconsertada, coração disparado. Os passantes parecem sombras num vai-e-vem frenético que seu cérebro não consegue acompanhar.  Estaria perdendo a lucidez? Não, deve ser o calor insuportável da mistura de asfalto e concreto somada à desordem dos hormônios constatada no último exame de sangue. O desconforto crescente cede lugar ao pânico. Procura uma parede para se encostar e recobrar os sentidos. Os óculos disfarçam o medo, ninguém perceberia. Ninguém a incomodaria perguntando o que você tem, quer um copo d’água ou coisa que o valha. Seu rosto desconhecido naquela multidão haveria de continuar assim.

Desde que completara quarenta anos não via mais o centro da cidade nem as multidões como ameaças. Aprendera a controlar seus passos em momentos como esse e desenvolveu técnicas de respiração para lidar com o desamparo causado pelo pânico. Aos vinte e cinco tivera a primeira crise. Em guerra consigo mesma abandonou os três anos de terapia. Isso é besteira, o que senti aquele dia não vai se repetir mais, sei controlar meus medos.

Cresceu convivendo com doenças que dizimavam crianças e adultos. Teve quase todas, pois vacina era coisa do outro mundo. Se sobrevivi à varíola e ao sarampo, porque teria medo agora? Neste exato momento o tempo deixa de ser cronológico e cede lugar à eternidade. O desconforto aumenta, as sombras dos corpos se transformam em pequenas formigas tão miúdas quanto a cabeça de um alfinete. Por que temer esses seres ínfimos e alienados que só sabem andar em fila? Ora, sou muito mais forte, posso dizimá-las com a ponta do meu tamanco. Não se aproximem ou sentirão na pele o peso da desigualdade. Seres insignificantes.

O suor escorre no colo, o cabelo amarrado alivia o desconforto. A parede e os óculos escuros é que lhe dão a segurança necessária para viver novamente essa situação sem perder a consciência. Ou será que já tinha perdido? Retoma os passos em direção ao cruzamento da Afonso Pena, carregando a sacola cheia de presentes baratos comprados na Galeria do Ouvidor. Naquele ano a crise econômica abalava o orçamento da casa, coberto pelo modesto salário de professora, mas precisava agradar a todos no natal. Imagine passar uma festa sem ter um presente para o marido, os filhos, os pais e a sogra, a sagrada família, célula que sustenta a sociedade civilizada. Não haveria de ser ela a contribuir para romper com o processo civilizatório.

Natal, ano novo, casamento na igreja, festa de aniversário, almoço aos domingos, ocasiões de que muitas vezes pensou em fugir. Mas não. Não foi capaz de fazê-lo. Chegou aos quarenta e cinco repetindo a ladainha da importância de se manter os laços que se constroem para toda a vida. Queria ter educado os filhos com valores mais modernos, descolados. Faltavam-lhe coragem e talvez um pouco mais de visão. Visão. Veja que coisa besta, visão eu tenho de sobra, falta mesmo é coragem.

Enquanto caminha em direção ao ponto de ônibus percebe a inutilidade daquela tarde e de muitas outras. Tantas sacolas cheias, o peito vazio, a cabeça oca, o corpo desobedecendo ao comando. Era preciso enfrentar as circunstâncias que dispararam aquele desconforto. Chegaria em casa logo, iria direto pro quarto meditar sobre a decisão. Não falaria com ninguém até que tivesse certeza. Bateriam na porta; fingiria estar dormindo. Poderia até alegar enxaqueca, como rotineiramente fazia. Será mesmo que esta é a saída – pensou ao destrancar a porta principal da casa. Ninguém na sala, o marido no escritório, o filho mais velho no videogame, o mais novo dormindo, a empregada preparando o jantar ao som de Nelson Gonçalves. Despe-se calmamente, admira-se no espelho, toma um banho demorado, sente-se inteira novamente. Esqueceria aquela tarde e todas as demais. A decisão estava tomada. Veste-se e sai em direção ao escritório. Que bom tê-la de volta, querida. Tudo certo para os preparativos do Natal? Hesita, mas segue em frente. Senta-se na cadeira de couro que herdara do seu pai, cruza as pernas, olha firmemente nos olhos do marido e diz: vamos conversar?

Poemas do livro O que ficou da Fotografia

vivências

o dia envelheceu mais cedo
uma lua torta capturou meus olhos
fixos num céu de vazios

o sertão não tem porta nem janelas
só silêncios e distâncias
calculadas pelos pássaros que põem ovos de pedra
” viver é muito perigoso” 

(inspirado no Grande sertão: veredas)

renovação

ruazinha estreita casas geminadas
quem passa
sente que o tempo corroeu o relógio na parede
em dias de reza
a vizinhança celebra o inverno
para regar o jardim plantado
com as flores de plástico do altar

eco

silêncio da noite
voz ecoando
no teu dorso
nu

burguês

com vista pro mar
de costas pra vida
vegeta
entre arranha-céus

Poemas do livro Meu Samba

ex.piro

respiro o pó das ruas
a solidão dos gatos
o cheiro das folhas caídas
os ossos do riacho morto
a face dos peixes secos

respiro a fome do dia seguinte
o cheiro dos temperos da minha mãe
o gosto acre da lembrança esquecida
o grito do vento nas casas vazias
da cidade que não vingou

respiro as entrelinhas da vida
não corro atrás de fantasmas
não quero viver na inércia
dum tempo que castra a luz dos vaga-lumes
e bebe o suor dos cactos que não nasceram

 ex . piro

clube

café
pão de queijo
flor na varanda
cheiro de chuva
silêncio na rua
um disco de milton
e a paisagem da janela lateral

Do livro Miragem

cacimbas

breves placas líquidas
rebrilhando ao luar
realimentam
a esperança
no sertão

miragem

raios verticais
e ardentes
daquelas paragens
iluminam
a infinita tristura
das colunas desnudas
e ermas
.
o sertão
é uma
miragem

Biografia

Autora de livros de poesia e acadêmicos. É professora e pesquisadora da Universidade Federal de São João-del-Rei, na área da educação e linguagem, com destaque para o tema da educação literária e outros tipos de letramentos. Coordena o Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Decolonialidade – GPEALE. Publicou três livros de poemas: Meu
samba (Editora Penalux, 2015), Miragem (Editora Cepe, 2015) e O que ficou da fotografia (Linguaraz Editor, 2016).

Participou das antologias Um Girassol nos seus cabelos: poemas para Marielle Franco (Mulherio das letras/Quintal Edições, 2018); Capibaribe vivo (Parque Capibaribe, 2015). Publicou inéditos no Jornal Rascunho (2020). No prelo estão um livro de memórias da infância, um de poemas, um de contos e o ensaio Ficção em Pernambuco (Editora Cepe) em coautoria com os escritores Pedro Américo de Farias e Cristhiano Aguiar. Criadora do Sarau Voz Poética da UFSJ.

Espaço ArteLetra

O Espaço ArteLetra é um ambiente de divulgação e circulação de produções artísticas e literárias, em particular de produções contemporâneas nacionais. Este Espaço de exposições tem como um dos principais objetivos apresentar projetos diversificados, incentivando a participação de novos artistas e contemplando diferentes suportes e linguagens, que tanto dizem da cena atual.

Uma das intenções do Espaço ArteLetra é aproximar o público de um amplo conjunto de obras, estimulando o acesso e consumo de arte. Ao trazer essas produções para o espaço privilegiado do Notícias Gerais, queremos suscitar novos diálogos e questões latentes da nossa sociedade, contribuindo para a formação de público e troca de experiências.

O palíndromo ArteLetra, formado pelo espelhamento quase perfeito das palavras “arte” e “letra”, apenas ressalta a característica híbrida das produções contemporâneas, e a estreita relação entre as artes, palavras e mídias. Esse laço é aqui uma representação das nossas relações, da maneira como nos correspondemos, e do reconhecimento de que as manifestações culturais nos tornam mais próximos, ainda que cada qual com seu olhar.

O Espaço ArteLetra mantém um calendário regular, sendo a cada semana um/a novo/a artista convidado/a.

Fiquem antenadas/es/os!!!

Deborah Castro, curadora.
arteletra.ng@gmail.com

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