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ARTIGO: CUIDADO COM “ESPECIALISTAS” FORMADOS NA UNIVERSIDADE DO WHATSAPP

Arte gráfica: Lucas Maranhão

Kelison Tadeu Ribeiro*

Decidi escrever este texto para falar sobre covid-19 no Brasil e, especialmente, em minha cidade São Tiago, em função do que tenho lido e ouvido nas redes sociais a respeito do tema. E o que tenho visto me deixa preocupado, sobretudo, pelo que tem sido falado por “especialistas” formados na Universidade Federal do WhatsApp. Escrevo movido pelo dever de responsabilidade diante dos caminhos que essa discussão ganhou nas redes sociais.

Em condições normais, eu não me arriscaria a falar desse tema, porque essa é uma doença nova e, portanto, a compreensão do mecanismo de ação do vírus no organismo humano ainda é desconhecida para a maioria dos cientistas, os quais, verdadeiramente, estudam o tema. Também não escreveria por saber que existem especialistas no Brasil e no mundo mais aptos do que eu para falar sobre o assunto. Porém, como há muitas pessoas bem menos qualificadas tecnicamente do que eu, cheias de pseudocertezas e pseudosoluções para “resolver” o problema, decidi me posicionar.

Uma rede de pesquisadores sérios ao redor do mundo trabalha, initerruptamente, para encontrar uma saída para esse desafio. No laboratório onde trabalho, dois cientistas lideram um dos braços locais de uma rede mundial de pesquisadores que estudam o SARS-CoV-2. Considero possuir alguma credencial para falar desse assunto, porque não sou um neófito em ciência. Trabalho initerruptamente com pesquisa científica há 17 anos. Nesse meio tempo, terminei minha graduação, fiz meu mestrado, doutorado e, atualmente, dedico-me a um pós-doutorado. Durante todos esses anos, estudei e pesquisei assuntos ligados a biofísica, biomedicina, neurociência e neurofísica, física médica e um pouco de virologia e epidemiologia.

Durante minha jornada como cientista na área de biofísica e física médica, convivi com pesquisadores de diversas instituições de renome no Brasil como o Departamento de Fisiologia e Biofísica da UFMG, o Departamento de Engenharia Biomédica da UFSJ, o Instituto de Engenharia Biomédica e de Física Médica UFRJ, a Escola Paulista de Medicina da Unifesp, o Hospital São Lucas, da PUC-RS. Também já trabalhei e convivi com pesquisadores de Universidades dos EUA, Alemanha, Argentina, França, Austrália.

Negacionismo e falsas soluções

Ao conversar com médicos que trabalham nos hospitais referência que atendem pacientes com covid, temos a noção do drama que estão passando os profissionais de saúde que estão na linha de frente da doença, em razão do agravamento da epidemia, muito por consequência do negacionismo de setores do governo e de outros segmentos da sociedade

O resultado do negacionismo são filas de espera enormes, com pacientes aguardando por vaga em hospitais, os quais estão com UTIs e enfermarias lotadas. Os novos casos aumentam a cada dia e o sistema hospitalar convive com o risco iminente de colapso. Além disso, corre-se o risco de faltar medicamentos para intubar pacientes, sem contar o oxigênio.

Há médicos da enfermaria covid trabalhando de 7h às 22h, de segunda a segunda, sem descanso, num esforço colossal para tentar salvar vidas. O mesmo acontece com enfermeiros e técnicos de enfermagem. Todos estão exaustos. Vender falsas soluções de cura da doença só ajuda a agravar um quadro que já é complicado e pode convergir para o caos. Acho que é hora de algumas pessoas terem um pouco mais de responsabilidade com suas falas e discursos.

Antes de falar de um assunto demasiadamente técnico como epidemia, seria interessante que o indivíduo, primeiro, fizesse o seguinte questionamento: o que eu sei sobre isso? O que estudei em literatura confiável sobre isso? Qual a minha experiência nesse assunto? Eu sei de cabeça o nome de três autores clássicos que estudaram esse assunto?

Se a única capela que você já ouviu falar é o templo religioso. Se a palavra Becker só te lembra uma marca de cerveja.  Se autoclave é uma palavra que você acabou de descobrir e agora vai ter que dar um Google para saber o que é, então, talvez, você não tenha condições de ter muitas certezas sobre pesquisa científica em laboratório.

Qualquer pessoa pode querer aprender sobre um assunto. Isso é louvável. Mas temos que nos informar e aprender pelos caminhos adequados. Quer saber o que é vírus? Procure alguém com doutorado em virologia para assistir aulas e, se isso não for possível, peça a ele para te indicar alguns bons livros técnicos sobre o tema. Quer saber o que de sério é publicado sobre covid? Leia as boas revistas científicas de medicina. Sugiro Lancet, JAMA, Nature Medicine, Science Medicine ou então procure bancos de publicações acadêmicas de medicina como o PUBMED. Isso irá ajudar a não ser um propagador de notícias falsas. Não importa qual a sua intenção. Lembre-se de que seu ato de encaminhar uma informação sem checar a veracidade e a confiabilidade da informação pode ter consequências desastrosas.

“O engraçado é que importantes lideranças do Brasil decidiram boicotar as duas únicas estratégias realmente eficiente de combate a pandemia. Distanciamento social e vacinação.”

Tratamento precoce: funciona?

Muito se fala de um tal de tratamento precoce contra a covid, usando um tal de kit. Cada dia, aparece um remédio milagroso que cura a doença. A fonte dessa informação quase sempre é o grupo de WhatsApp que a turma organizava a peladinha do meio da semana, antes da pandemia.  Revistas sérias da área de ciências médicas que são conduzidas por médicos-cientistas não cansam de desmentir tais “estudos”, de demonstrar sua ineficácia, mas isso nunca é publicado lá, no mensageiro instantâneo.

O criador e propagador da primeira tese do “kit de tratamento precoce” responde a um processo no Conselho de Medicina e no Conselho de Ética em Pesquisa da França. O médico Didier Raoult, que foi um dos principais defensores de Cloroquina para tratamento de covid, já admitiu que os resultados dele foram fraudados e que não há provas de que Cloroquina é eficiente para combater a covid. Pior, Cloroquina é um bloqueador de canais de potássio dependente de ATP, uma reserva de energia da célula. Seu uso descontrolado pode provocar arritmia cerebral e cardíaca.

Pacientes que fazem uso de Cloroquina, sem um rigoroso acompanhamento médico, correm o risco de sofrer um infarto. Não é raro os médicos que trabalham nas enfermarias e CTIs que atendem covid receberem pacientes com taquicardia e com risco de morte iminente por fazerem uso descontrolado desses medicamentos. Isso acaba sendo um problema a mais para os médicos dos hospitais especializados, porque além de terem que combater os sintomas da covid, os profissionais de saúde precisam desintoxicar pacientes “dopados” por essa medicação ineficaz e que causa efeitos colaterais. As pessoas que propõem o uso desses “Kits” podem expor os são-tiaguenses a um risco, estimulando essas práticas cientificamente não comprovadas.

Não sou contra experimento científico. Seria incoerência da minha parte não defender a ciência, mas sou defensor da ciência baseada em evidência e feita com responsabilidade. Os protocolos para se fazer um experimento, principalmente em humanos, são rigorosíssimos. A primeira coisa é ter aprovação de um Comitê de Ética que faz parte do Sistema CEP/Conep  para realização da pesquisa. Depois, é obrigação ter uma estrutura física e uma equipe multidisciplinar adequada (médicos com doutorado em diferentes especialidades clinicas, matemáticos e estatísticos, integrantes do Comitê de Ética) para conduzir e avaliar os resultados, além da capacidade de intervir rapidamente caso haja algum problema. Outra coisa importante é obter o consentimento do paciente, por escrito, de que ele aceita participar de um procedimento experimental.

A realização de procedimento experimental em um paciente, sem autorização dele, é crime previsto no Código Civil (Art.15). Uma coisa é um Hospital das Clínicas da UFMG ou da USP conduzir uma pesquisa para testar um medicamento. Outra coisa é fazer um experimento sabendo a realidade Hospitalar de São Tiago e que nossa política de saúde pública sempre foi a do carro na estrada levando pacientes para outras cidades. Daí pergunto: quais condições temos de conduzir nossa população a essa aventura experimental? Temos estrutura profissional e material para isso?

Um experimento bem feito de testagem de medicamento não é um processo trivial. Exige metodologia científica rigorosa e profissionais extremamente qualificados para analisar os resultados. Uma metodologia de testagem, minimamente descente, tem que ter seleção randomizada de amostras, métrica para evitar efeito placebo, adoção de técnicas para prevenir viés de confirmação, estudo duplo cego, avaliação de efeitos colaterais e de eficiência.

Feito tudo isso, vem a parte mais importante. Submeter seus resultados e sua metodologia a uma revista especializada para avaliação de outros cientistas ao redor do mundo. Um trabalho científico honesto precisa ser replicado por outro pesquisador em qualquer parte do mundo. Só depois de passar por toda essa maratona de testes, um protocolo novo de uso de um medicamento obtém a chancela para ser usado. Ciência responsável é feita dessa forma.

O engraçado é que importantes lideranças do Brasil decidiram boicotar as duas únicas estratégias realmente eficiente de combate a pandemia. Distanciamento social e vacinação. Ao invés disso, abraçam uma tese tresloucada, irresponsável e sem qualquer evidência dos tais Kits milagrosos. Fazem uma politicagem desnecessária para um assunto que deveria ser técnico. Deveríamos ter uma política com “P” maiúsculo para o enfrentamento da doença. Vírus não tem ideologia. Não existe a forma de direita ou de esquerda de combater a covid. Existe a forma inteligente e a forma burra.

“O vírus da covid matou no Brasil, em um ano, a mesma quantidade de brasileiros que o vírus da AIDS matou em quarenta anos. Essa tragédia não é por acaso.”

O pior é que muita gente no Brasil tem escolhido a burrice e tem a tratado como virtude. O governo de extrema direita israelense é um dos mais bem-sucedidos do mundo, no enfrentamento da doença. Fez isolamento social rigoroso quando precisou. Aprovou auxílio econômico para evitar que a população forçada a ficar em casa pudesse ao menos se alimentar. Israel também já vacinou quase metade da população e as taxas de contaminação começam a cair vertiginosamente. O governo de centro-esquerda da Nova Zelândia também está sendo muito bem-sucedido e, em linhas gerais, repetiu o que fez Israel.

O que esses dois governos ideologicamente distintos têm em comum? Pautaram suas decisões com base na deliberação de um comitê formado por renomados epidemiologistas e gestores especialistas em saúde pública e se guiaram entre erros e acertos, bem mais acertos que erros, pela medicina baseada em evidência. Já o governo de extrema direita brasileiro, o governo de esquerda mexicano, o ex-governo direitista de Trump nos EUA e o governo de extrema esquerda venezuelano desconsideraram as recomendações científicas comprovadas e jogaram seus respectivos países nesse precipício.

O caso dos EUA é emblemático. A derrota eleitoral “trumpista” mudou a abordagem que o governo dos EUA fazia da doença e, hoje, com medidas eficientes de contenção do vírus, com quase 100 milhões de vacinados, a contaminação por covid nos EUA cai vertiginosamente. Aqui, com nossa mistura de doidivanas e charlatães disfarçados de cientistas, contabilizamos 290 mil mortos. O vírus da covid matou no Brasil, em um ano, a mesma quantidade de brasileiros que o vírus da AIDS matou em quarenta anos. Essa tragédia não é por acaso. Atribui-se ao escritor e jornalista norte americano H. L. Mencken a seguinte reflexão: “para todo problema complexo, existe sempre alguém que propõe uma solução simples, fácil e completamente errada”.

Se vivo fosse, Mencken, certamente, encontraria parte significativa dessas pessoas propondo suas soluções mágicas no Facebook, Instagram e WhatsApp. A única forma de vencermos essa crise sanitária é pela via científica, mas para isso precisamos ouvir mais os médicos cientistas da UFMG, USP, UFRJ, Johns Hopkins University, Oxford University. Outra coisa que teremos que fazer para enfrentar a covid em nosso município é parar de ouvir os “especialistas” formados na Universidade Federal do WhattApp. E, no mínimo, seremos poupados de ouvir suas soluções simples, fáceis e erradas.

* Kelison Tadeu Ribeiro é graduado em física. Mestrado em neurociências e doutorado em biofísica e bioengenharia. Atualmente faz pós doutorado pela UFSJ estudando os mecanismos envolvidos no metabolismo energético celular durante a ocorrência de crises epilépticas. Agradecimento especial a médica e pesquisadora Dra Andreia pelo indispensável suporte na escrita desse texto. Ao compartilhar comigo a experiência e os desafios diários vivenciados dentro de um Hospital atendendo pacientes na enfermaria covid pude compreender um pouco do drama que os profissionais de saúde dos hospitais especializados enfrentam diariamente para evitar que nossa tragédia humanitária fique ainda pior.

3 COMENTÁRIOS

  1. Este rapaz chama quem usa tratamento precoce que já salvou várias pessoas inclusive de grupos de risco de negacionistas. Ele mesmo é um negacionista pois não quer reconhecer que antibióticos amenizam muito os sintomas. Ele mesmo é um negacionista pois não quer aceitar que há estudos comprovando eficiência. No mínimo quer ser genocida fazendo povo procurar ajuda só quando está em um ponto que dificulta a recuperação. Ninguém tá obrigando ninguém a tomar este tal kit, ao contrário da vacina que estão obrigando. Cadê a liberdade e bom senso? Lastimável este descaso com a vida! Numa guerra toda estratégia é válida!

  2. Estado de SP é prova que lockdown não funciona! Têm estudos comprovando a eficiência de tratamento precoce também! Negar a realidade é verdadeiro negacionismo!

    • Marcos, você está enganado. Os países que fizeram lockdown obtiveram excelentes resultados e, por isso, a medida é recomendada pelas autoridades sanitárias como eficiente. Quanto ao kit covid (o do tratamento precoce), ele foi condenado pelas entidades de saúde esta semana.
      Procure informação de qualidade. Não acredite em tudo o que lê nas redes! Se cuide!

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