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COLUNA AGRIDOCE: A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO AINDA É A CARNE NEGRA



Black friday interminável (Foto: Douglas Caputo)
Douglas Caputo

Douglas Caputo

O que sinto quando ouço o trecho interpretado por Elza Soares? Muito pouco ou quase nada. Na verdade, nenhum branco seria capaz de ativar qualquer significado social que a expressão comporta em si. O lugar de fala, o pertencimento é do preto, o qual carrega todo o simbolismo íntimo que perpassa a expressão, haja vista que sua carne ainda continua à venda como mercadoria barata.

Mesmo que queiramos nos apropriar da carne, seus dissabores passarão longe de nossos paladares, porque brancos, nós não saberemos o que é ser negro. Podemos até praticar a empatia, mas ela será tão somente uma construção verossimilhante, um falseamento “que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”, como versou o poeta português Fernando Pessoa.

Ora pois, de nada adiantará publicações empáticas e simpáticas nas redes sociais, protestos nas ruas pela morte do americano George Floyd enquanto a alma alvejar o branqueamento mais branco, enquanto a Casa Grande domesticar a Senzala. Não que devamos nos silenciar, mas a estrutura profunda do racismo requer de nós mais que bandeiras e palavras de ordem contra tudo o que repudiamos.

É preciso elaborar uma desconstrução sistêmica de ações e discursos naturalizados na sociedade, senão continuaremos a reproduzir ideologias segregantes não só pela cor de pele em si, mas pelo terror que representa a alteridade dissonante de nosso alter ego. Aquilo que a pensadora Hannah Arendt conceituou como “Banalidade do Mal”, conduta consagrada entre os regimes Fascistas do passado – e do presente.

No livro “Eichmann em Jerusalém” (1963), Arendt relata o julgamento do indivíduo homônimo ao título da obra. Agente nazista que decidia quem iria para os campos de concentração, Adolf Eichmann foi construído midiaticamente como um monstro do Realismo Fantástico. Mas, ao cobrir a audiência para a revista “The New Yorker”, a intelectual se deparou com um sujeito “normal”.

Criticada por suas conclusões, Arendt viu em Eichmann um simples funcionário público, um “burocrata”. Diferentemente do monstro midiático, a teórica argumentou que o agente estava programado para obedecer às ordens, mesmo aquelas que designavam o genocídio de judeus. À época, críticos da autora disseram que ela ‘inocentou’ o nazista, quando, na realidade, ela havia constado a banalidade do mal.

Dentro do sistema Nazista, crime seria não praticar aquilo ditado pelo Führer. Ou seja, a banalidade do mal não é um privilégio de monstros míticos, ela se corporifica quando repetimos, mesmo que inconscientemente, comportamentos que atentam contra um grupo específico. Daí a necessidade de desconstrução do imaginário coletivo contra a carne negra, o que não vai acontecer abruptamente.

É nosso papel educar as gerações mais novas para que o racismo estrutural deixe de existir na sociedade. Se não concentrarmos nossas energias nesse propósito, prevalecerá a banalidade do mal ou, nas palavras de Raul Seixas, os burocratas que selam, registram e carimbam tudo para, no final do expediente, o óbvio: “Plunct Plact Zum/ Não vai a lugar nenhum!”.

Blacktude

O branqueamento social narcotizante (Imagem: Reprodução / internet)

Para desconstruir essa estrutura burocrática que sedimenta o racismo estrutural será preciso anos e mais anos de trabalho. Para onde quer que se olhe, lá está a hegemonia branca. No reverso disso tudo, a escritora afro-americana Tony Morrison é um desses baluartes que consegue romper o branqueamento social e, por meio de uma literatura robusta, assumir o lugar de fala da comunidade negra.

Em “The bluest eye” (1970), traduzido como “O olho mais azul”, Morrison narra a história da menina Pecola, depreciada socialmente pela sua cor. A devastação psicológica da garota é tão profunda que ela nega sua identidade e parte na missão de ter os olhos mais azuis. A personagem chega a ser vítima de um charlatão que lhe promete o par de safiras no rosto. Tudo numa linguagem que reproduz as gírias afro-americanas.

No entanto, é no início da obra que Morrison já amarra a ideologia racista ao desfecho triste de Pecola. A autora cita um texto extraído de uma cartilha escolar. Nele, uma família branca, papai, mamãe e o casal de filhinhos brincam com o gatinho no quintal de casa. Uma fantasia para a protagonista capaz de lhe inculcar um estilo de vida ideal, mas irreal.  

O trabalho de Morrison faz uma denúncia importante dos mecanismos de controle que perseveram o branqueamento societário. No Brasil, por sua vez, a escritora Carolina Maria de Jesus também expõe esse lugar de falar do preto marginalizado. O livro “Quarto de Despejo”, escrito em forma de diário, traz a voz de uma negra, favelada que luta contra os sistemas discriminatórios impostos à sua existência.

A narrativa real de Maria Carolina é chocante, já que desvela aos olhos brancos das classes média e alta um universo pitoresco vivenciado pela autora. Isso porque as personagens do enredo foram vistas como figuras exóticas ambientadas em um zoológico humano inesperado. Essa, talvez, tenha sido a característica mais badalada pela crítica quando do lançamento de Quarto de Despejo, em 1960.

Embora Machado de Assis, descendente de escravos e epilético, seja aclamado pelo conjunto – brilhante – de sua obra, ele retrata uma sociedade burguesa e branca, o que não causa estranhamento ao público. Já Maria Carolina traz seu microcosmo experiencial, a marginalização a partir de uma linguagem de pertencimento ao seu recorte social, o que a torna uma estrangeira em seu próprio país.

Tanto Morrison quanto Maria Carolina representam essas vozes negras que ecoam em uma dimensão histórica-social marcada pelos grilhões que insistem em ancorar o racismo ao modus operandi que constitui as interações com a alteridade. Elas não devem ser vistas como figuras pop, mas como pessoas de atitude, blacktude. Um passo para acabar com a injúria racial é dar espaço a quem tem lugar de fala legitimado.

Do contrário, continuaremos vendendo carne negra em nossos mercados brancos. Continuaremos assassinando Floyds, Migueis, Joãos como se fosse algo banal. É preciso dar um basta nisso tudo, é preciso negar o Fascismo que se instala como vírus nas democracias. Isso só será possível por meio de uma educação em seus vários espaços. É preciso desconstruir para reconstruir uma sociedade em que a Casa Grande não agigante ainda mais frente à Senzala.          

Redação Douglas

*É jornalista, mestre em Letras e professor de redação no curso SOU1000.

Os artigos e colunas publicados não refletem necessariamente a opinião do portal Notícias Gerais

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