Tulio de Oliveira Tortoriello *
São João del-Rei, por ser uma cidade com mais de trezentos anos, possui muita história, muita memória e uma aura de tradição em torno de seus monumentos e manifestações culturais. Em várias ocasiões, quando tratamos da memória, mencionamos também a tradição, deixando transparecer a forte relação entre os termos. Algumas vezes são até tomados por sinônimos. Essa transmissão de práticas e valores de geração em geração e conjunto das crenças de um povo merece uma análise mais cuidadosa, devido aos vários significados e implicações que o conceito pode carregar.
A tradição em geral nos remete a algo muito antigo, sacralizado pelo tempo e pelos antepassados, trazendo a crença de coisa que não pode ser alterada, de coisa realmente imutável e inatacável. Mas muitas vezes pode não ser bem assim. Os historiadores Eric Hobsbawm e Terence Ranger, em A invenção das tradições, organizaram vários ensaios de autores sobre rituais e práticas tradicionais da Grã-Bretanha e de outros países europeus para revelar que tais ritos podem não ser tão puros e antigos como parecem sob um primeiro exame, mas, ao contrário, podem ser até mesmo inventados. Um dos exemplos que Hobsbawm apresenta, sobre uma tradição inventada, é a que diz respeito às cerimônias públicas da família real britânica. A maioria das pessoas as enxerga como algo muito antigo. Mas todo o aparato, na forma como acontece atualmente, data dos séculos XIX e XX. No livro, os autores sinalizam com a abordagem de outros casos que vêm reforçar a teoria da fragilidade de muitas tradições. Ao definir a “tradição inventada”, eles também destacam que o interesse de determinado grupo pode determinar a criação de uma tradição.
Essa observação de Hobsbawm nos parece ter pontos de convergência com os rituais das cerimônias católicas que acontecem em São João del-Rei. A Semana Santa aqui, por exemplo, é um evento carregado de tradição e simbolismo, frequentemente remetido às origens e ao passado colonial da cidade. Muitas vezes, as alusões ao evento dão conta de que essa celebração é a mais antiga ainda em atividade no Brasil. Como em quase todos os lugares do mundo que celebram os últimos dias de Cristo na terra, as celebrações em São João del-Rei se iniciam no Domingo de Ramos e terminam no Domingo da Ressurreição. Nesse período, três procissões tomam conta das ruas históricas da cidade – a Procissão de Ramos no domingo, a Procissão do Enterro, na sexta-feira, a mais esperada e que leva maior quantidade de fiéis às ruas e a Procissão da Ressurreição, no Domingo de Páscoa – e inúmeros ritos internos são celebrados em vários templos, com destaque para as celebrações realizadas na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, que concentra a maioria dos ritos mais tradicionais, muitas vezes realizados em latim, como o Ofício de Trevas, que acontece na noite de Quarta-Feira Santa e se repete na Sexta-Feira Santa e no Sábado Santo com o nome de Matinas e Laudes, pois é realizado na parte da manhã, nesses dias.
Como podemos perceber, a Semana Santa em São João del-Rei possui vários rituais que se repetem há muitos anos. O uso do latim, ainda utilizado em muitas cerimônias, mas há muito já abolido dos ritos da Igreja Católica no mundo, remete a um tempo longínquo e nos faz crer que essa é uma tradição que parece “perdida nas brumas do tempo”, tomando aqui de empréstimo palavras de Eric Hobsbawm.
Voltemos os olhos para a Procissão do Enterro, uma manifestação religiosa, realizada na Sexta-Feira Santa e que leva grande quantidade de são-joanenses e turistas para as ruas da cidade. O cortejo ocorre após o “Descendimento da Cruz”, quando a imagem de Cristo é retirada da cruz e colocada num esquife, sob os olhos de muitos fiéis, que se colocam diante da escadaria da igreja de Nossa Senhora das Mercês, para prestigiar o evento, que começou a ser realizado naquele local apenas a partir da metade do século passado.
Na procissão, após a passagem de pessoas caracterizadas de personagens bíblicos e da Verônica – que canta em latim, tradicionalmente em sete determinados pontos por onde passa a procissão, exibindo um sudário com a face de Cristo – há o esquife com a imagem de Cristo morto e um andor com três imagens: de São João Evangelista, de Santa Maria Madalena e de Nossa Senhora das Dores, sendo eles personagens que teriam presenciado a crucificação de Cristo, segundo a narrativa da bíblia. Essas imagens foram feitas por um conhecido artista e artesão da cidade, Osni Paiva, há mais de dez anos.
Um turista ou mesmo um são-joanense mais desavisado, pode imaginar que tais imagens são antigas, tradicionais, pois suas feições e suas roupas são semelhantes às imagens esculpidas por santeiros do período colonial. Por muitos anos, a imagem que saía na procissão, logo atrás do esquife com o Senhor Morto, era uma imagem de Nossa Senhora das Dores, feita no final do século XVIII. A irmandade que organiza a procissão, do Santíssimo Sacramento, encomendou, ao artista Osni Paiva, as imagens dos três personagens bíblicos, para substituir a imagem de Nossa Senhora das Dores, pois esta foi, durante muitos anos, emprestada à procissão pela irmandade dos Passos, proprietária da peça sacra.
Alguns protestos foram feitos, tanto por pessoas ligadas ao patrimônio histórico quanto por jornais locais, diante da substituição da imagem antiga pelas novas peças. O motivo, é claro, era a troca de uma peça tradicional e antiga, que era utilizada havia muitos anos na procissão, por imagens novas, produzidas sob encomenda para o evento. Mas tais protestos foram muito pontuais, não tiveram grande repercussão e hoje, passados alguns anos, já não se comenta mais a troca das imagens da Procissão do Enterro. Os espectadores do belo espetáculo religioso, executado ao som de matracas e de música sacra, nem mais percebem que as imagens que desfilam diante de seus olhos podem ser mais novas do que um aparelho de televisão ou uma peça do mobiliário de suas casas.
Não é de nossa alçada tomar uma posição, ou seja, defender ou ser contra a substituição das imagens, referendada pelo Monsenhor Sebastião Paiva, pároco da Catedral do Pilar à época do acontecimento. Como afirmou Hobsbawm, ao discorrer sobre tradições inventadas, “não nos cabe analisar aqui até que ponto as novas tradições podem lançar mão de velhos elementos, até que ponto elas podem ser forçadas a inventar novos acessórios ou linguagens, ou a ampliar o velho vocabulário simbólico”. Também não queremos,de forma alguma, desvalorizar ou diminuir a importância das tradições são-joanenses, da Semana Santa ou quaisquer outras, antigas ou mais recentes, pois sabemos de sua importância para a população da cidade, seja por razões religiosas ou culturais.
O que desejamos mostrar com esse episódio é que, muitas vezes, para defender a imutabilidade ou preservação de certas manifestações culturais ou de monumentos históricos, as partes responsáveis pela salvaguarda desse patrimônio arriscam-se a invocar “antigas” tradições, que podem nem ser assim tão remotas e rígidas. Podem também adotar posições conservadoras e intransigentes em nome de falsas premissas e de tradições apoiadas em frágeis e duvidosos alicerces de autenticidade e antiguidade.
Assim, tratar as origens de São João del-Rei, de maneira mais cuidadosa e mais aberta, levando em conta os vários aspectos e as contradições de conceitos como os de arquivo, tradição e memória, pode facilitar entendermos o “hoje” da cidade, a sua identidade cultural variada e o futuro que podemos vislumbrar para o lugar. Pode também trazer mais clareza, transparência e verdade às discussões sobre preservação do patrimônio histórico e cultural da cidade.
* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Letras (linha de pesquisa Literatura e Memória Cultural) pela Universidade Federal de São João del-Rei, com dissertação defendida sobre “Usos sociais do patrimônio histórico e cultural de São João del-Rei”, ex-membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de São João del-Rei, de 2003 a 2009.
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