João V. Bessa *
Hoje de manhã o céu estava lindo no centro da cidade. Eu não estava lá para ver, soube porque alguém publicou no Instagram. Como estou quieto em casa há três semanas, dependo mais do que nunca da internet para saber do que acontece lá fora. Os dias têm sido assim para muitas outras pessoas, mas não para todas. Afinal, a crise escancara as desigualdades que sustentam a normalidade, porque é cruel com os mais vulneráveis da estrutura.
A imposição do distanciamento social afetou não apenas a rotina, mas, de certa forma, o exercício da cultura. Porque não há mais aulas, almoços de família, encontros religiosos, happy hour. Não há eventos, nem festas. Devemos evitar as ruas e o contato com outros corpos. Tudo está suspenso, até mesmo o futebol.
Quem está em casa sente o incômodo de ser privado de seus hábitos. O corpo entediado carrega uma cabeça vazia que pensa em tudo, pensa demais. A lembrança má vem, o pensamento bom vai. Na falta do que fazer, buscamos por refrescos ou refúgio nas redes sociais, nos livros, na música, no cinema e no que restou da programação de TV. Conteúdo e entretenimento é o que não falta, felizmente. Deveríamos agradecer aos (às) artistas.
Falando em artistas, a classe vive um momento de incerteza, assim como demais profissionais informais ou autônomos (as). Se as apresentações e concertos são cancelados, e os bares e as casas de show fecham, falta o cachê. Se os boletos não param de chegar, pode faltar recurso para o básico. Todo espetáculo depende do trabalho coletivo para acontecer. A área da Cultura emprega muita gente, nós só enxergamos o palco.
Por outro lado, a quarentena é uma brecha para o ócio, fundamental para o ofício: artistas precisam de tempo para estudar, compor e acabar suas obras. Tempo para pensar naquelas coisas que nem todo mundo pensa, mas que todos valorizam. E é justamente isso que têm feito. Como a situação nos afeta como um todo e atravessa a nossa subjetividade, é esperado que a vivência desses dias se reflita nas artes. Por isso podemos esperar por muitos novos lançamentos, bons e ruins. Tanto agora quanto imediatamente depois disso tudo passar. E vai passar.
Por enquanto, as incertezas dominam o pensamento. Pode ser que os nomes consolidados no mercado, milionários e famosos, não sofram grande prejuízo. Para os outros, a história será diferente, sobretudo nas cidades do interior. Vivemos um momento excepcional, a crise é uma encruzilhada. Enquanto isso, sentimos algo estranho no peito que não conseguimos nomear, talvez seja luto.
Quem sabe faz ao vivo
Em relação à música, o principal assunto da quarentena foram as lives, que é como estão chamando os shows, entrevistas e demais aparições ao vivo nas redes sociais e no YouTube. Essa foi a aposta para manter (ou até aumentar) o engajamento com o público. A praticidade facilita tudo, já que um celular conectado basta para transmitir sua imagem para toda a rede. Por isso foram tantas e tão diversas.
As estrelas do Sertanejo, o gênero mais popular do país, naturalmente atraíram o maior público. O cantor Gusttavo Lima (28/03) e a dupla Jorge e Mateus (04/04) tocaram por horas seguidas, atraíram dezenas de milhões de visualizações, arrecadaram doações e fizeram propaganda. Mas foi Marília Mendonça quem quebrou o recorde de audiência simultânea do YouTube. A artista, que no ano passado se apresentou para 100 mil pessoas em BH, reuniu 3,2 milhões de “cornos” para cantar e beber suas canções. E, ao contrário dos colegas, Marília se apresentou sozinha, sem banda ou exageros; conseguiu entreter sem desrespeitar o distanciamento social.
Passada a primeira semana de lives, fica a impressão de que todos os gostos foram contemplados: além do sertanejo, o funk, o samba, o rap, o axé, o pop, etc. À sua maneira, cada artista encontrou sua forma de interagir com a fanbase. Valesca esperou a meia-noite para relembrar os proibidões da Gaiola das Popozudas, Margareth Menezes e BNegão concederam entrevistas e Josyara apresentou uma canção inédita. Mas nem todos toparam participar, como Zeca Pagodinho e a banda Nação Zumbi, para evitar aglomerações.
Sem sair de sua casa, MV Bill compôs e gravou um videoclipe para a canção “Covid-19”. O lendário rapper carioca alerta que a pandemia representa um risco iminente para população pobre e preta brasileira, para os que não têm a possibilidade de ficar em quarentena ou não têm espaço suficiente em casa para o distanciamento. As principais vítimas da pandemia não estarão entre a elite que trouxe o vírus consigo do exterior, mas entre a classe trabalhadora. Ele direciona sua crítica à negligência das autoridades que expõem a população ao risco.
A dupla de brega funk Shevchenko e Elloco lançou um remix de um meme da rapper Cardi B, cantando as orientações da OMS. A Orquestra da Câmara do Amazonas também fez sua parte. Surgem as manifestações espontâneas de pessoas anônimas, que equilibram palavras de conscientização, deboche e trocadilhos, como “passar álcool na mão”. Viralizou um vídeo do MC RayBan mandando seu recado curto e grosso para o Covid-19: “bactéria filha da puta, micróbio do caralho!”. O xingamento sincero traduz o sentimento geral.
Enfim, foi assim que o mundo da música reagiu às primeiras semanas de quarentena. Como a pandemia gera também uma crise financeira, não podemos prever os seus efeitos no mercado da música, tanto para artistas independentes quanto para os mais populares, comerciais. Enquanto lidam com as incertezas, o medo e o luto, artistas não deixam estar presentes. Através de iniciativas criativas, se aproximam de nós, reforçando a sua importância midiática e afetiva, por mais contraditória que possa ser.
- Estudante de Jornalismo e guitarrista, se dedica ao estudo do papel da música na construção das subjetividades pretas brasileiras. Fluminense, nasceu em Cordeiro. Contato: jvbessajor@gmail.com / Twitter: @jvbessa”