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DOCEIRA DA ‘MARIA FUMAÇA’ SE REINVENTA E TENTA GARANTIR SUSTENTO DA FAMÍLIA COM ENTREGAS EM DOMICÍLIO

Edna olha com carinho para o tabuleiro de quitutes no trenzinho Maria Fumaça.
Edna, fazendo o que ama: vendendo seus doces no passeio de Maria Fumaça (Foto: Najla Passos)

Najla Passos
Da Editoria

Há 17 anos, Edna dos Santos Marcelina, 55 anos, ganha a vida fabricando os doces que vende na Maria Fumaça, o trem turístico que faz o passeio entre São João del-Rei e Tiradentes. Com a renda, sustenta os três filhos e dois netos. Um deles, que ainda é estudante, trabalha com ela, vendendo água no trem. Os outros dois estão desempregados.

Com a suspensão do passeio desde domingo (15), ficou desesperada. “Eu não sabia o que fazer para sustentar minha família”, contou ao Notícias Gerais. Edna é um dos 38 milhões de brasileiros que vivem na informalidade – um fenômeno que vem crescendo desde a reforma trabalhista e atingiu níveis recordes no país antes mesmo do início da pandemia de coronavírus, conforme o IBGE.

“Eu achei que a situação estava mais estável, que ia melhorar e acabei de alugar um cômodo para montar uma mini fábrica de doces. Ainda nem acabei de montá-la. Como vou pagar dois aluguéis?”, questionou, antes de arquitetar um novo plano: fabricar seus doces deliciosos e vende-los a domicílio, com qualidade e segurança.

Eu trabalhava das 5h30 às 23h, dormia no emprego, em um quartinho apertado, e só podia lavar minhas roupas no tanque dos cachorros. Nem podia conversar com as crianças da casa. A patroa dizia que eu não tinha ‘psicologia’

Culinária tradicional e moderna

Doceira de mão cheia, Edna conhece receitas tradicionais da culinária mineira que vem desde os tempos da colonização e lhe foram passadas pela família. Seu quitute mais famoso é o pirulito de mel, feito como aqueles descritos nos livros sobre o início do ciclo da cana-de-açúcar no Brasil. “Já ganhei até prêmio com esta receita. É a que mais vende na Maria Fumaça”, conta.

Ela também domina a produção de pé-de-moleque, quebra-queixo, bolos e biscoitos tradicionais, com destaque para o pão de mel feito com farinha integral, uva passas e, claro, o mel. “O meu não tem recheio de Nutela nem de doce de leite. É feito da forma tradicional, com a diferença que os antigos usavam farinha preta e eu prefiro a integral”, revela.

Apesar de adorar a culinária tradicional, se adapta bem aos novos tempos: vende palha italiana, biscoitos e bolos veganos, sem ingredientes de origem animal. Também tem uma produção em série de quitutes sem lactose e dietéticos.  Um conhecimento adquirido em anos de prática que, em tempos de coronavírus, ela quer levar até a casa dos fregueses.

“Todo mundo que prova meus quitutes, adora. Mas está difícil encontrar as pessoas. Tentei nas ruas de Tiradentes, mas estão completamente vazias e não consigo mais andar quilômetros como quando era jovem. Preciso realmente de apoio para seguir com minha vida”, justifica.

A foto dá um close no tabuleiro de Edna, com vários quitutes: pirulito de mel, pé de moleque, quebra-queixo, cocada e pão de mel.
No tabuleiro de Edna tem alguns dos quitutes mais gostosos da culinária tradicional mineira. (Foto: Najla Passos)

Todo mundo que prova meus quitutes, adora. Mas está difícil encontrar as pessoas. Tentei nas ruas de Tiradentes, mas estão completamente vazias

Trabalho em tempo de coronavírus

A alternativa de atender clientes à domicílio surgiu de uma conversa com a filha, Claúdia Carmo, 32 anos, que está muito preocupada com a mãe. “Ela chora o dia inteiro. Nós queríamos fazer um almoço beneficente no próximo domingo, mas com as restrições para eventos, nem isso podemos”, explica.

A dupla, então, decidiu divulgar a venda dos quitutes online, com atendimento higiênico e entrega à domicílio. “Assim as pessoas podem me ajudar, ajudar minha família e experimentarem doces deliciosos”, afirma Edna.

Trabalho voluntário

Ao saber da história, a jornalista Carol Rodrigues, da equipe do Notícias Gerais, se propôs a criar um Instagram, voluntariamente, para ajudar a família. “A gente precisar ajudar como pode e manter a solidariedade nesses tempos de crise”, afirmou.

O recém lançado Instagram com os quitutes da Edna, o Delícias de São João del-Rei, pode ser conferido endereço @deliciasdoreisjdr.

Ela também aceita encomendas pelo celular que divide com a filha Cláudia: (32) 99989-8563.

A jornalista Carol Rodrigues, com a cabeça para fora da janela da Maria Fumaça, cabelos ao vento
Carol Rodrigues conheceu Edna durante a reportagem que fez sobre o passeio de trem. (Imagem: Najla Passos)

História de vida e de luta

Edna e seus 15 irmãos nasceram do terceiro casamento do também doceiro e garimpeiro José Maria dos Santos, o José do Ferro Velho, como era conhecido em São João del-Rei.  Um negro que chegou em São João del-Rei ainda criança, fugindo dos maus tratos de uma fazenda onde trabalho ainda era praticado em condições análogas a da escravidão, no início do século passado.

Não sabia exatamente onde e nem quando nasceu. Não tinha lembrança dos pais. Morreu em 2003 com a idade provável de 100 anos, conforme sua certidão de nascimento, tirada quando ele resolveu se casar pela primeira vez. “Como ele não sabia sua idade e nem sua origem, o cartório o registrou como se tivesse 18 anos”, conta a filha.

Analfabeto, o pai criou os meninos em um barraco no bairro Águas Gerais, um dos mais humildes da São João del-Rei daquela época. Ele era analfabeto e também viveu a vida toda do trabalho informal, dos chamados “bicos”.

Muitas pessoas hoje ainda olham diferente para os negros. Mesmo quando dizem que eu sou linda, eu sinto que estão dizendo também que sou diferente delas

Aos 13 anos, Edna teve que começar a trabalhar como empregada doméstica. Passou por maus bocados. Eu trabalhava das 5h30 às 23h, dormia no emprego, em um quartinho apertado, e só podia lavar minhas roupas no tanque dos cachorros. Nem podia conversar com as crianças da casa. A patroa dizia que eu não tinha ‘psicologia’ para isso”, relembra.

Ela enfrentou o preconceito quando decidiu se casar com um homem branco. “Minha sogra não aceitou o casamento e limpou a conta do meu marido”, relembra. Depois de ficar viúva, se casou novamente, dessa vez com um homem negro.

Hoje, ela diz que o tom do preconceito mudou, mas continua presente na sua vida. “Muitas pessoas hoje ainda olham diferente para os negros. Mesmo quando dizem que eu sou linda, eu sinto que estão dizendo também que sou diferente delas”, desabafa.

A oportunidade de vender quitutes no trenzinho mudou sua vida. Ela deixou as histórias de maus tratos e preconceito nas casas de família para trás. E, agora, mesmo em tempos de coronavírus, quer e precisa se manter na ativa.

“Pelo tempo que tenho de trabalho, já era para estar aposentada. Mas, naquela época que comecei, doméstica não tinha direito nenhum e agora, depois da mudança,  a aposentadoria ficou mais difícil”, conta.  

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