João V. Bessa*
Quando Thomas Edison inventou o fonógrafo, em 1877, seu propósito era captar a voz humana e vender o aparelho para escritórios, como registradores de cartas. Não demorou muito para a nova ferramenta ser utilizada para gravar canções. Nos anos seguintes, o fonógrafo e os cilindros de cera rodaram o mundo, sendo exibidos inclusive em Porto Alegre. Foram os primeiros passos da indústria fonográfica que transformaria para sempre a forma de ouvir, produzir e pensar a música.
O tema desta edição da coluna Vozes Veladas é a evolução das tecnologias de gravação nas primeiras décadas da indústria no Brasil; a sequência de eventos e inovações que antecederam a efervescência musical daqui. Partimos do início do século 20 até os anos 1940, que marcam a chamada “Era de ouro do rádio”. Nosso guia é o professor de História da Música Popular Brasileira do DMusi UFSJ, Marcos Filho.
O primeiro capítulo dessa história tem como protagonista o tcheco Fred Figner, que fundou a primeira gravadora do Brasil, a Casa Edison, em 1902. Ele mesmo já havia visitado o país em 1891, exibindo o fonógrafo em estados como o Pará e Minas Gerais para depois se estabelecer no Rio de Janeiro. A primeira fábrica seria inaugurada em 1912, um marco, explica o professor: “Foi a terceira fábrica de todo o mundo. O mercado de música no Brasil, principalmente de música popular, sempre foi muito grande”.
Até então o que se gravava em cilindros de cera no Brasil era enviado de navio para a Alemanha, onde se produzia todos os discos comercializados pela Casa Edison e outros selos. A produção nacional se concentrava no Rio de Janeiro, mas também havia atividade em Porto Alegre, com a Casa A Elétrica que registrou ritmos tradicionais através do selo Disco Gaúcho.
Há 118 anos, nem sequer havia o samba e o choro, pelo menos não na forma como os conhecemos: lundu, polca, maxixe e marchinhas eram os gêneros populares antes de 1917. O maxixe, aliás, pode ser considerado o primeiro gênero de música popular brasileira: “Criado a partir da mistura de outros gêneros com a polca, o maxixe vai gerar, depois, o choro e um dos tipos de samba: é o ancestral desses gêneros”.
Justamente por essa importância genealógica é que esse assunto das tecnologias de gravação (da história da indústria no geral) se torna interessante. Se hoje há quem pense em novas formas de lançar suas músicas e até mesmo em superar o formato do álbum, essa viagem no tempo pode servir para entender as mudanças mais impactantes da indústria que transformam nossa própria relação com a música.
Leia abaixo a entrevista
Quais eram os gêneros que as pessoas ouviam há mais de cem anos?
Lundu, polca, maxixe, marchas eram os gêneros mais gravados nesse período pré-samba, anterior a 1917. A Casa Edison, em especial, e a indústria no início do século vai aglutinar muitos gêneros que já estavam em construção na segunda metade do século 19. Era uma época que ainda não existia o samba como a gente conhece. Não existia o choro como gênero musical. Então, as músicas gravadas são de maxixe, um gênero muito comum na época. O maxixe é, talvez, o primeiro gênero brasileiro de música, criado a partir da mistura de outros gêneros com a polca. O maxixe vai gerar, depois, o choro e um dos tipos de samba: é o ancestral desses gêneros. Também havia um gênero que aparecia em alguns discos, a “cançoneta”, que reunia músicas não-classificadas, acompanhadas por violão ou piano.
Em um dos primeiros textos do Adorno, antes da formulação da teoria da Indústria Cultural, “As curvas da agulha”, ele fala o quanto da voz masculina era bem representada pelo gramofone, ao contrário da voz feminina. Então surge a discussão se isso seria por causa do lugar da mulher na indústria fonográfica, se é o machismo da época.
Por que era difícil gravar as vozes durante a fase mecânica da indústria?
Na era mecânica, a faixa era limitada, algumas coisas gravavam melhores que outras, por exemplo o contrabaixo, a tuba. A voz masculina ficava razoavelmente boa, ao contrário da voz feminina, que era mais aguda e ficava com um som até fantasmagórico. Existe até uma discussão interessante na academia. Em um dos primeiros textos do Adorno, antes da formulação da teoria da Indústria Cultural, “As curvas da agulha”, ele fala o quanto da voz masculina era bem representada pelo gramofone, ao contrário da voz feminina. Então surge a discussão se isso seria por causa do lugar da mulher na indústria fonográfica, se é o machismo da época. Fiz uns estudos e vi que a questão acústica também influenciava. Apenas durante esse período, a voz feminina ficava ruim nessas gravações. Isso acontecia com outros instrumentos, como a percussão. Por exemplo, na gravação de “Pelo Telefone”, em 1917, não tem percussão. Conta-se que os técnicos da época, que eram alemães, falavam que não poderia gravar percussão porque “sujava” a gravação. Na verdade, poderia se gravar, mas alguns instrumentos, como o surdo, não seria bem captado. A primeira gravação do hino nacional, 1902, tem percussão.
Como a invenção do microfone mudou essa história?
A gente pode dividir essa linha do tempo em duas eras: acústica (ou mecânica) e elétrica. A primeira vai até 1925, nos EUA, e 1927, no Brasil. Com o microfone, você pode amplificar mais o som. O som acústico entra pelo microfone elétrico, o processo transforma as ondas sonoras em impulsos elétricos que entram no amplificador. Esse amplificador transforma esses sinais elétricos em impulsos mecânicos para se registrar nos discos. Com a chegada do microfone, se amplia a faixa de frequência. Com a chegada da gravação elétrica, essa faixa vai se ampliando, isso possibilita o registro de instrumentos e vozes com mais fidelidade. A mudança começa nos anos 1920 e vive uma espécie de ápice nos anos 1950.
na gravação de “Pelo Telefone”, em 1917, não tem percussão. Conta-se que os técnicos da época, que eram alemães, falavam que não poderia gravar percussão porque “sujava” a gravação.
Por que se questiona essa definição de “era de ouro”?
Obviamente isso tudo é questionado. Outras tecnologias vieram depois, como o vinil nos anos 1950, que permite a gravação de álbuns e muda muita coisa. Há a geração de artistas dos anos 1960, dos Festivais da Canção, é um negócio gigantesco. Do ponto de vista dos gêneros, surgem vários outros, mas esses da “era de ouro” eram de fato matrizes. O que a Tropicália fez é retomar esses gêneros das décadas de 1930 e 1940, por exemplo. Alguns compositores dessa época entraram para história, como Dorival Caymmi, Ary Barroso, Pixinguinha, Carmen Miranda, Francisco Alves. É o período das grandes vozes. Há essa discussão, é importante trazer a crítica de que outros períodos foram tão ricos e tão importantes.
Como a evolução das tecnologias de gravação proporcionou a efervescência musical da chamada era de ouro? (divide em duas)
A tecnologia auxiliou na ampliação de faixas, na captação de instrumentos e vozes. Na era mecânica, tudo precisava de muita força para ser gravado, sem dinâmica, variações. Isso influenciava muito os arranjos e a forma como se escrevia a música. Ao longo da década de 1930, Pixinguinha foi contratado como arranjador da RCA Victor e desenvolveu uma nova forma de fazer arranjos para acompanhar cantores. Ao mesmo tempo, cantores precisaram se adaptar ao microfone ou sairiam do mercado. Muitos outros surgiram já nesse período elétrico e tiveram que aprender a lidar com o microfone como um instrumentos, os melhores cantores eram os que conseguiam se fazer representar, na expressão e interpretação. Nesse momento surgem grandes cantores.
o Getúlio Vargas foi muito “bondoso” com a música popular, muito paternalista. Ainda como deputado, ele aprovou uma lei que permitia anúncios pagos no Rádio. Já no Estado Novo, ele cria uma cota de música popular em emissoras de rádio e nos cassinos.
Para além da tecnologia, que outros fatores influenciaram o fenômeno?
Houve também um processo do mercado e da indústria cultural. A partir da década de 1930, explodem as gravadoras no Brasil. Onde existia a Casa Edison (que depois seria batizada Odeon/EMI) surgiram a RCA Victor, a Columbia e muitas emissoras de rádio como a Tupi, a Phillips e a Rádio Nacional. O mercado da música, principalmente a música popular, vai se ampliar muito. Surge a imprensa especializada em rádio e disco, a revista Phono-arte, que dura até 1932 e que fazia crítica dos lançamentos. O crescimento é geral do ponto de vista cultural, comercial e tecnológico. Foram vários fatores reunidos. E claro, o Getúlio Vargas foi muito “bondoso” com a música popular, muito paternalista. Ainda como deputado, ele aprovou uma lei que permitia anúncios pagos no Rádio. Já no Estado Novo, ele cria uma cota de música popular em emissoras de rádio e nos cassinos. Havia um protecionismo que favorecia muito a produção nacional, não entrava tanta coisa estrangeira no Brasil. Fora a propaganda: sempre que Vargas fazia uma viagem internacional, viajava ao lado de artistas de música popular, como Carmen Miranda.
Currículo e dicas:
Marcos Filho (DMusi/UFSJ) estudou especificamente as tecnologias de gravação e a música popular desse período em seu mestrado e no doutorado.
O professor deixa algumas dicas para quem quiser se aprofundar no assunto. O livro “A casa Edison e nosso tempo”, de Humberto Franceschi, e o acervo digital do Instituto Moreira Salles que reúne gravações da época, o acesso é gratuito.
* Estudante de Jornalismo e guitarrista, se dedica ao estudo do papel da música na construção das subjetividades pretas brasileiras. Fluminense, nasceu em Cordeiro. Contato: jvbessajor@gmail.com / Twitter: @jvbessa