Início Cultura CRÍTICA: THE MIDNIGHT GOSPEL, HISTÓRIA PARA MOMENTOS DIFÍCEIS

CRÍTICA: THE MIDNIGHT GOSPEL, HISTÓRIA PARA MOMENTOS DIFÍCEIS

The Midnight Gospel (Ward e Trussell, 2020)

Lucas Maranhão *

Há quase três anos, ao escrever sobre a animação Rick and Morty (2013-presente), busquei relacionar o conceito de “suspensão voluntária da descrença” com os desenhos animados. A tal suspensão da descrença é uma prática que nosso cérebro frequentemente realiza, principalmente quando estamos lidando com obras ficcionais. É ela que nos faz desligar os laços com o mundo real e aceitarmos a existência de elementos que sabemos estarem longe do mundano. Obras de fantasia, como Senhor dos Anéis, além da ficção-científica, do terror e outros gêneros, estão constantemente nos tirando do mundo real. Enquanto analisava Rick and Morty, percebi o poder que as animações possuem sobre a suspensão da descrença. Por ter uma relação com o mundo real facilmente rompida, tudo pode acontecer em um desenho animado. O único limite é a imaginação do artista.

Então, chegamos à The Midnight Gospel (2020), que, assim como a série já citada, também serviria de objeto perfeito para a análise envolvendo suspensão da descrença. Levando-nos a uma nova viagem transcendental a cada episódio, é interessante ver como não só os diferentes mundos retratos nos puxam para diferentes realidades, mas como até mesmo o protagonista não precisa ter uma forma definida durante grande parte dos episódios, podendo ser diferentes avatares que mudam de acordo com sua vontade. Estamos falando de uma estória que só poderia ser realizada como uma animação, não sendo cabível em nenhum outro formato audiovisual – e isso, por si só, já é um grande acerto do roteiro.

A série da Netflix é a nova produção de Pendleton Ward, criador da famosa animação Hora de Aventura (2010-2018), em parceria com o comediante Duncan Trussell. Em sua mais renomada animação, Ward, ao focar no público infanto-juvenil, desenvolveu uma história digna dos melhores livros de fantasia e mostrou seu talento para criar mitologias. Em The Midnight Gospel, a viagem é muito mais interna – apesar de seu protagonista, Clancy, estar frequentemente conhecendo novos mundos.

Durante os oito episódios, acompanhamos Clancy explorando os diversos mundos do seu simulador de universos, sempre buscando alguém para entrevistar em seu podcast espacial Porém, por mais que passemos toda a temporada assistindo às entrevistas com as mais diversas figuras, é com o próprio Clancy que mais criamos intimidade, algo que fica mais evidente nos últimos episódios, que mostram que a busca pela compreensão da existência  sempre começa dentro de si. “Perdoe as partes de você da qual sente vergonha”, diz a Morte em certo momento para Clancy.

Outro ponto interessante é que os mundos virtuais que o protagonista conhece estão sempre à beira do apocalipse. Isso traz o tema da morte para o centro do debate em diversos momentos. Se Rick and Morty decide abordar o tema com niilismo, The Midnight Gospel o trata com um existencialismo profundo frequentemente ligado a ideias budistas. Assim, a classificação +18 que recebe acaba não sendo justificada pela violência ou palavras chulas, mas por um mergulho em conceitos filosóficos complexos, apresentados de uma maneira em que a imersão se torna simples.

O timing do lançamento da série, apesar de totalmente sem intenção, é perfeito. Em nossa realidade, temos que lidar diariamente com distopias e crises que só imaginaríamos ver em filmes. A regra de “suspensão da descrença” balança. Não é todo o visual psicodélico que torna a animação tão marcante, mas a maneira como fala de temas que estão tão próximos de nós. The Midnight Gospel é uma história para momentos difíceis, carregada de bom humor, ironia e esperança.

Agradeço ao amigo Alisson Santos por ter aberto meus olhos para esta maravilhosa série animada.

Nota:

* É jornalista, designer e apaixonado por cinema.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui