João Carlos de Sousa *
Já se passaram dois dias desde que recebi a proposta de escrever uma crônica. “Faça uma crônica sobre o mundo pós pandemia, o novo normal”. Três crônicas apagadas depois, sob a inércia do isolamento e a frustração de não saber condensar tudo que eu poderia perfeitamente abordar em alguns parágrafos sagazes e noções pontuais, daquela escrita que quem lê para e pensa: “Uau, isso aqui é bom demais”, eu finalmente caí a ficha da minha própria pretensão. Não preciso ser sagaz, nem perfeitamente pontual. Deixo os pensamentos tomarem forma para além do desejo por aplausos, e reflito: o que há de novo no novo normal?
No meio de uma tempestade, vão-se as flores para dar lugar a lama molhada, e os ventos chamam a próxima estação. Mas não estamos numa tempestade, muito menos na transição das estações. Estamos em algo muito mais nocivo, mais divisível e mais perigoso, algo que não passa sem deixar marcas, marcas heterogêneas, mais profundas em uns, mais dissimuladas em outros.
Como será depois disso, me é proposto responder, ainda é confuso, mas mesmo na confusão elementos familiares surgem, não poucos e nem silenciosos, mas bem fixos e amontoados. O mundo pós pandemia tem raízes, raízes que se mantêm, crise após crise, com seu cheiro mofado, sua aparência estragada, mas com um laço novo na cabeça. Um adereço, um update, como aquela atualização de aplicativo cuja mudança é quase imperceptível.
O mundo pós pandemia tem raízes, raízes que se mantêm, crise após crise, com seu cheiro mofado, sua aparência estragada, mas com um laço novo na cabeça. Um adereço, um update, como aquela atualização de aplicativo cuja mudança é quase imperceptível.
“As prioridades globais deverão ser reavaliadas”, diz um entrevistado qualquer na televisão. “A pandemia nos colocou no mesmo barco”, diz uma influencer qualquer em suas redes sociais, não antes de promover um maravilhoso produto para seus cabelos loiros. “Estude como puder, onde puder”, diz um garoto branco em frente a um computador de R$ 10 mil numa propaganda do governo. Realmente há algo novo aqui: o péssimo gosto de design no logotipo.
Dispor-se a pensar um mundo pós-pandemia é debruçar-se sobre as mesmas velhas questões: divisão de classes, em que a pobre faxineira morre sob a negligência do abastado, o jovem negro morre sob a violência policial, a jovem mulher trans morre à margem da invisibilidade social, famílias inteiras imploram por água e sabão para lavarem suas mãos, enquanto outras saem, com sua fúria característica, usar o “caos de escada”, como bem pontua um certo personagem de ares fascistas do seriado Game of Thrones.
O cenário é novo, mas os combates são os mesmos de sempre. (…) O sistema continuará igual, e o mundo ganhará um novo adereço para chamar de seu: um rio de corpos, virulentos, baleados, desnutridos.
Um país inteiro desnudo, despido de qualquer filtro colorido que possa te enganar de um de seus mais antigos problemas: a desigualdade, que se fragmenta como um projeto dos que se mantém poderosos, em segregação e estamento.
O cenário é novo, mas os combates são os mesmos de sempre. O mundo pós pandemia será de reflexão, mas toda reflexão precisa ser seguida por uma ação. O sistema continuará igual, e o mundo ganhará um novo adereço para chamar de seu: um rio de corpos, virulentos, baleados, desnutridos.
Mas espera? O que há de novo no novo normal?
* É estudante de Comunicação – Jornalismo da UFSJ e produziu este texto sob a orientação do professor Paulo Caetano, numa ação do projeto Observatório da Saúde Coletiva – UFSJ.