Lucas Maranhão *
Desde o início do Guia Cinéfilo, há um mês, começamos uma viagem pelo mundo: conhecemos um pouco do nosso próprio cinema, com José Mojica Marins, o cinema hollywoodiano, com Quentin Tarantino e, na Europa, aterrizamos na Itália e a Inglaterra. Esta semana é a vez de conhecermos a Espanha, através da visão de seu mais bem sucedido cineasta – um de meus favoritos – Pedro Almodóvar.
Almodóvar é um fruto da La Movida Madrileña, um movimento cultural que surge com a quista morte do sanguinário ditador Francisco Franco em 1975. La Movida era um grito por liberdade que estava guardado na garganta há muito tempo. Não se precisava mais ter medo e os artistas mostrariam isso. Nesse cenário, Almodóvar apareceria como um das vozes mais autênticas e ousadas de sua geração.
Décadas depois, é facilmente possível apontar sua importância para a sétima arte. Hoje, é um diretor amadurecido, que, além de acumular prêmios em suas prateleiras, possui uma carreira singular. Almodóvar está vivo para sempre em seus filmes. Cada cena, cada enquadramento é tão cheio de si que podemos sentir sua presença incorpórea.
Por isso mesmo, o diretor adquiriu uma série de marcas registradas: o uso de cores fortes, principalmente o vermelho; o senso de moralidade particular; e a repetição frequente de atores e atrizes entre os filmes. Ficou conhecido por mostrar nas telas a relação maternal, temas LGBT, o consumo de heroína e narrativas com múltiplos personagens. Porém, sem dúvidas, sua mais importante vocação era contar histórias centradas em personagens femininas. Por isso, decidi dividir sua carreira em três fases que levam os nomes das principais atrizes com as quais trabalhou em sua carreira.
Era “Carmen Maura” (1980 – 1988)
O início de sua carreira representa um período mais “fora da caixa”, alternativo ao restante de sua vivência, em que não tinha medo de arriscar. Cada filme trazia uma faceta diferente de sua personalidade como cineasta. Maus Hábitos (1983) e A Lei do Desejo (1987) são belos exemplos disso. Destaco, a seguir, dois filmes deste período, simbolizados pela talentosa atriz Carmen Maura.
Em Matador (1986), Almodóvar introduz seu lado sombrio. Na coluna passada, ressaltamos a influência das novelas pulp sobre Quentin Tarantino. Assim como ele, Pedro Almodóvar também é apaixonado por novelas. Porém, por aquelas novelas sensacionalistas e romances policiais bregas. Matador é um filme que gira em torno do violento mundo das touradas e do visceral desejo sexual. Da misturando os dois, o artista retira prazer pela morte. A obra também traz, em papel de destaque, Antonio Banderas, ator presente desde seus projetos mais amadores até seu mais recente filme. Uma névoa de surrealismo e terror é visível e é a primeira vez que Almodóvar adota este tom, mas não a última (como veremos mais para frente).
Porém, é com Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) que conquista o mundo. Este não é seu primeiro filme de comédia, nem o primeiro a dar espaço para elas, mas é o seu maior acerto. A fiel Carmen Maura, onipresente até então, ganha o protagonismo interpretando uma dubladora de filmes que não consegue entrar em contato com seu amante: ele a evita a todo custo. Também traz outras colaboradoras frequentes desse período: Rossy de Palma, Maria Barranco, Julieta Serrano e, é claro, Antonio Banderas. Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos é, antes de tudo, um filme sobre independência emocional. Almodóvar, com seu estilo particular, cria uma narrativa insana e divertida que envolve desde um gazpacho envenenado a terroristas xiitas.
Matador e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos representam dois estilos sobre os quais se equilibraria ao longo da carreira: o terror psicológico e a comédia ácida.
Era “Victoria Abril” (1989 – 1995)
Ata-me! (1989) é seu primeiro projeto sem Carmen Maura (que só retornaria a trabalhar com o diretor muitos anos depois, em Volver), mas também o primeiro de uma sequência de colaborações com Victoria Abril. Considero um de seus grandes filmes! Almodóvar decide adotar novamente um tom mais sombrio, depois do sucesso na comédia.
Antonio Banderas interpreta um maníaco que, após ser liberado de um sanatório, passa a perseguir a personagem de Abril para que ela “aprenda a amá-lo”. O filme é uma sátira à relação sequestrador-refém e à Síndrome de Estocolmo. Assim, ele foca basicamente na relação entre os dois protagonistas, algo incomum à Almodóvar, que prefere rechear a tela de personagens.
O talento e beleza de Victoria Abril encanta, e a atriz se destaca ainda mais em De Salto Alto (1991), filme em que precisa dividir tela com uma das mais fantásticas atrizes espanholas, Marisa Paredes. Interpretando mãe e filha envolvidas com um mesmo homem (e um mesmo crime), as duas atrizes fazem um espetáculo à parte nesta típica novela policial de banca de jornal.
Era “Penélope Cruz” (1997 – presente)
A primeira contribuição de Penélope Cruz à um filme de Almodóvar é uma pequena, mas marcante aparição na introdução de Carne Trêmula (1997). O filme, na verdade, é protagonizado por Francesca Neri, Liberto Rabal e o grande Javier Bardem (ainda em início de carreira). Ele vale destaque não apenas por ser um de seus grandes acertos, mas por também representar seu amadurecimento como roteirista. A partir desse ponto, Almodóvar domina suas obras: elas perdem a excentricidade jovial de seus filmes anteriores, mas ganha em substância e consistência.
Seu próximo filme não negaria esse fato. Tudo Sobre Minha Mãe (1999) é até hoje considerado por muitos como sua maior e mais reconhecida obra. O Oscar de Melhor Filme Estrangeiro é parte desse reconhecimento. Uma mãe (Cecilia Roth) que vê seu filho morrer aos 18 anos, decide voltar a Madri para cumprir a última promessa que fez à ele: reencontrar seu pai. Porém, antes disso, reencontra uma amiga de longa data, Agrado (Antonia San Juan), uma mulher transexual que se prostituía para sobreviver, e, através dela, conhece a freira Hermana Rosa (Penélope Cruz).
Penélope Cruz se desenvolve ainda mais como atriz e vai ganhando cada vez mais espaço até conquistar o protagonismo total com Volver (2006). Neste, Almodóvar mergulha no melodrama, mas consegue se sustentar no gênero como nenhum outro diretor. Um filme angustiante, mas belo, que também se concentra na realidade feminina, propositalmente distanciando qualquer homem de espaço na narrativa.
É verdade que nesse mesmo período ele produz filmes centrados em personagens masculinos: Fale com Ela (2002), Má Educação (2004) e o meu favorito, A Pele Que Habito (2011). Até mesmo seu último filme, Dor e Glória (2019), faz parte dessa categoria.
Dor e Glória talvez seja seu filme mais pessoal. Antonio Banderas interpreta um perfeito Pedro Almodóvar, que leva o nome de Salvador Mallo. Um famoso cineasta que passa por um processo de envelhecimento e começa a refletir sobre a vida e carreira. Assim, relembra o seu passado e descobre que todas suas raízes retornam a uma pessoa, sua mãe (interpretada por Penélope Cruz, em sua versão jovem e por Julieta Serrano, em sua versão idosa). Mesmo que focado em um protagonista masculino, ele consegue nos contar uma história fundamentalmente sobre uma mulher.
A cena mais bela do filme acontece logo no começo, quando vemos diversas mulheres cantando e lavando roupas à beira de um rio. O pequeno Salvador Mallo está lá, uma pequena criança. Talvez seja esse o grande apreço do diretor pelas mulheres: elas representam suas raízes.
* É jornalista, designer e apaixonado por cinema.