Início Opinião Crônica QUANDO SENTIR DOR É MELHOR DO SENTIR NADA…

QUANDO SENTIR DOR É MELHOR DO SENTIR NADA…

Beatriz D’Almeida Casaro *

Maria está cortando cebolas, em movimento repetitivo. Como quase tudo na sua rotina que está em um ciclo sem fim desde que tornou-se dona de casa. Não era bem isso que ela vislumbrava para seu futuro e sempre que esse pensamento lhe atingia, seus olhos ficavam marejados, algumas vezes ela até se permitia chorar. Desta vez ela mistura a angústia com as lágrimas de cebola e se deixa levar.

Logo retorna a si, cortou o dedo. O sangue cor de vida lhe faz abandonar tais bobagens de mulherzinha e ela percebe que está atrasada. Logo seu marido vai chegar com as crianças e o jantar não está pronto, a mesa não está posta e ela está do avesso. E como se pedisse desculpas a Deus pelas loucuras que pensou, começa a agradecer com toda força pelo que possui.

A família janta feliz e seu marido, João, conta às crianças sobre as aventuras do mundo a fora, do cliente irritado com quem teve que lidar, a senhora engraçada no elevador e as miudezas que fazem Maria pensar no machucado e, talvez pela insanidade que só as donas de casa contraem, o fazem doer ainda mais[1] . A inquietação chama atenção das crianças. que ao verem a mãe sangrando se espantam.

Os pequenos olhos, cheios de ternura e preocupação, fazem o corte incomodar ainda mais, e,  que a esta altura parece que se abriu mais e vai lhe rasgar ao meio. Trata de voltar a si, não pode permitir-se levar pela histeria que assola as loucas. Tranquiliza os filhos e mostra que está tudo bem. Afinal, está em casa com sua família, o que poderia estar errado?

João, que há tempos preocupa-se com os devaneios da mulher, não se convence. Antes de deitar, trata de falar com a esposa, uma mulher que ele sempre achou conhecer tão intimamente e amava. Ele não percebeu que o corte já lhe cobria o corpo todo e que ela não saberia explicar, nem se conhecesse todas as palavras do mundo, como ele pode crescer tanto.

A distância de Maria o assusta, os olhos que antes se apresentavam meigos e apaixonados tornaram-se áridos. Vai ao banheiro e verifica que as pílulas receitadas não estão sendo tomadas. Por que a mulher não se cuida? Estaria histérica? Um turbilhão de pensamentos lhe ocorrem enquanto dirige-se ao quarto para confrontar a esposa. Ao ver o frasco, Maria desaba. Não queria saber de tais pílulas que lhe tiravam o ânimo e a vontade de viver, mas tinha medo da insanidade.

Em um embate sem palavras, ela pega o frasco e engole o remédio. Ambos deitam-se, e Maria vai sentindo o mar dentro de si se acalmando, e a ferida fechando-se sem curar. Ela já não sente mais nada, nem dor, nem alegria, nem paixão. Encara o teto e se apega à dor em seu dedo, pressiona a ferida com força e se acalma ao sentir dor, algo é melhor que nada.

* É estudante de Comunicação – Jornalismo da UFSJ e produziu este texto sob a orientação do professor Paulo Caetano para a disciplina Produção Textual.

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