Najla Passos *
Após quatro meses isolada, Tiradentes foi reaberta ao turismo na última terça (14). Mas a Estação Ferroviária, coração e principal atrativo turístico da cidade, continua fechada desde o dia 15 de março deste ano, quando a Maria Fumaça apitou pela última vez pelos trilhos que ligam São João del-Rei a Tiradentes.
A circulação do trem turístico mais característico de Minas Gerais foi suspensa por tempo indeterminado depois que a pandemia do novo coronavírus começou a fazer suas primeiras vítimas no Brasil. E quem entende a alma do lugar sabe o quanto mirar a estação deserta traz uma sensação de profunda nostalgia.
Até a Covid-19 aportar por aqui, a Maria Fumaça fabricada há dois séculos pela empresa norte-americana Baldwin Locomotive Works-Philadelphia, puxando seus nove vagões, com capacidade para 280 passageiros, era a responsável pela circulação de uma média mensal de 10 mil turistas entre Tiradentes e São João del-Rei.
Até a Covid-19 aportar por aqui, a Maria Fumaça era a responsável pela circulação de uma média de 10 mil turistas entre Tiradentes e São João del-Rei, TODOS OS MESES.
Paulistas, cariocas, alemães, ingleses, suecos… todo mundo queria conferir o passeio em uma tradicional ferrovia do século 19, cujos 12 quilômetros que ligam os dois municípios continuam preservados tais como eram quando foram inaugurados pelo imperador D. Pedro II, em 1881.
Mas não são apenas as divisas que vinham com a locomotiva que fazem falta à Tiradentes e, claro, também à São João del-Rei. As chegadas e partidas da Maria Fumaça pela Estrada de Ferro Minas do Oeste (Efom), nos últimos 139 anos, marcam o ritmo da vida das pessoas. Encantam as crianças e enchem os corações mais velhos de saudades e nostalgias.
O apito da Maria Fumaça
O professor, pesquisador e escritor tiradentino Luiz Antônio da Cruz entende bem este sentimento. Autor do livro “Memória Ferroviária”, sabe o quanto a ferrovia e a cultura da região estão entrelaçadas. Na obra, além de resgatar a história da ferrovia no Brasil, ela conta como o tema está retratado em todas as formas de manifestações artísticas, eruditas e populares.
E relata também o quanto cada trilho arrancado ou cada estação desativada deixaram sequelas na história das pessoas que viviam no ritmo do apito dos trens. “Os antigos usuários contam histórias preciosas dos tempos em que tudo dependia das ferrovias e até mesmo dos apitos das locomotivas, usados como relógios, que eram uma referência para todos”, afirma Cruz.
Segundo ele, esta ligação profunda com o trem fez com que os moradores das margens da Efom recebessem com profunda tristeza a notícia de que a ferrovia seria desativada, entre 1966 e 1984, em nome de um tal “progresso” que via no transporte rodoviário o futuro do Brasil.
Dos quase 800 quilômetros que a ter nos seus tempos áureos, só restaram em operação os 12 que ligam São João a Tiradentes. E agora, com a pandemia, nem eles mais.
“A ferrovia legou ao Brasil vasto patrimônio cultural, especialmente arquitetônico, com as edificações características das estações”.
Luiz Antônio da Cruz, pesquisador
História dos trilhos!
O pesquisador lembra, na sua obra, que a ferrovia foi criada por George Stephenson, na Inglaterra, em 1825. Dez anos depois, o Brasil já traçava seus primeiros projetos ferroviários que, em 1854, passaram a se tornar realidade no Brasil Império, com a inauguração dos 18 quilômetros da Estrada de Ferro Mauá, no Rio de Janeiro.
Em Minas Gerais, a ferrovia se tornaria realidade em 1874, quando fazendeiros do café da Zona da Mata investiram na criação da Estrada de Ferro Leopoldina, que ligava a corte à Minas Gerais e ao Espírito Santo. Três anos depois, em 1877, chegou ao distrito de Sítio, no município de Bias Fortes, a Estrada de Ferro D. Pedro II, a Central do Brasil.
Sítio foi o local escolhido para abrigar o marco zero da Estrada de Ferro Minas do Oeste que, em 1980, alcançou à Barroso e, no ano seguinte, São João del-Rei, onde foi formalmente inaugurada pelo imperador D. Pedro II.
Alçado à categoria de município em 1948, Sítio, recebeu o nome de Antônio Carlos, considerada hoje uma das cidades mineiras chaves no registro da memória ferroviária. Pela sua estação principal, erguida no século 19, ainda passam os trens da Central do Brasil e as história da Minas do Oeste.
Alçado à categoria de município em 1948, Sítio, recebeu o nome de Antônio Carlos, uma das cidades mineiras chaves no registro da memória ferroviária.
Registros históricos e memórias pessoais
No livro Memória Ferroviária, Luiz Antônio da Cruz conta que foi a Lei n° 2.398/1873 que autorizou a construção do trecho de 100 quilômetros da ferrovia entre Antônio Carlos e São João del-Rei, concluído nove anos depois, com a peculiar bitola de 0,76 metros, ou seja, uma distância entre os trilhos bem mais estreita do que adotam as ferrovias mais contemporâneas.
A viagem pela Estrada de Ferro Minas do Oeste saía de Antônio Carlos, passando por Prados, Barroso e Tiradentes, para então atingir São João del-Rei. E era marcada pela poesia que margeava o impetuoso Rio das Mortes e a imponente Serra de São José. Esta mesma viagem era a alegria da adolescência de Luiz Antônio da Cruz, na década de 1970.
“Nós fazíamos estes passeios aos sábados, mas a viagem começavam antes, porque tínhamos que nos preparar, tínhamos que trabalhar para juntar dinheiro”, conta. O roteiro do grupo de amigos tiradentinos era pré-definido: pegavam a Maria Fumaça em Tiradentes pela manhã, passavam o dia em Antônio Carlos, e retornavam no final da tarde.
Já conheciam de cor e salteado as estações do caminho. Em Antônio Carlos, o ponto alto do dia era almoçar na pensão da Dona Glaura. “Era um cardápio simples, mas muito saboroso. Ela servia comida mineira e uma macarronada que nós adorávamos”, lembra.
Para Cruz, o passeio hoje, se fosse possível ser reativado, geraria renda e capital cultural para os municípios, como o trem turístico que continuou operando gera para Tiradentes e São João. “Se a ferrovia não tivesse tido seus trilhos arrancados, esta viagem seria, hoje, seria um atrativo turístico e cultural fabuloso, porque permitiria ao turista passar um dia inteiro no passeio. E quanto mais se consegue reter o turista, mas ele gasta no local”, avalia.
O pesquisador acredita que uma viagem ferroviária possui sempre uma dimensão cultural muito impactante. “O turista se prepara para a viagem, escolhe o vagão, admira a paisagem”. Como exemplo, ele cita a viagem do trecho de São João del-Rei a Tiradentes, que dura cerca de 45 minutos, mas permite ao viajante aprender muito sobre a história da região.
“Neste passeio, pode-se aprender sobre as viagens dos bandeirantes para o interior do Brasil, sobre a mineração e o ciclo do ouro no século 18, sobre a geografia do Rio das Mortes, com suas enchentes e inundações, sobre a fauna da região. Há muitos aspectos a serem exploradas do que a imponente Serra de São José, que é uma importante unidade de mata atlântica”, exemplifica.
Há esperança?
Os trilhos arrancados da Efom não têm mais como serem recuperados para a locomotiva voltar a circular até Antônio Carlos e outras paragens. Mas o passeio de Maria Fumaça no trechinho que liga São João del-Rei a Tiradentes irá voltar sim, tão logo a pandemia dê sinais de retrocesso.
Em nota, a VLI, empresa que opera o trem turístico, informou ao Notícias Gerais que “avalia o cenário e está em contato com o poder público para entender quando será o momento oportuno para que a retomada deste serviço seja feita da forma segura ao público e profissionais”.
Como adquirir Memória Ferroviária
A obra Memória Ferroviária resgata a história social e cultural das ferrovias no Brasil, em português e inglês, com registros fotográficos de encher os alunos e aquecer os corações.
Com as livrarias e lojas turísticas ainda fechadas em função da pandemia, Luiz Antônio da Cruz está comercializando seu livro apenas pela internet. Os pedidos podem ser feitos pelo, email luizcruztiradentes@gmail.com.
A obra sai por R$ 50, mais as despesas com os Correios.
* É jornalista, mestre em Linguagens e Literatura Brasileira e diretora-executiva do Notícias Gerais