Por Douglas Caputo *
Há algo de podre no reino das redes sociais. Não. Não me refiro ao volume hiperbólico das postagens sobre coronavírus, mas ao uso panfletário, aparelhado das publicações em torno da pandemia. Conforme ressaltei em artigo publicado no Notícias Gerais, semana passada, a pirotecnia do governo expôs sua fragilidade para administrar a crise.
Crise que se agrava com a bagunça no coreto promovida pelo clã dos Bolsonaro. Na última quarta-feira (18), a trapalhada apareceu no Twitter do filho do patriarca, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Em clara demonstração xenófoba, o parlamentar detonou um conflito diplomático com os chineses.
“Quem assistiu Chernobyl vai entender o q ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. +1 vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução”, sentenciou o deputado.
Imediatamente ao tuíte de Bolsonaro, o filho, veio a resposta do embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, também pelo Twitter. “As suas palavras são um insulto maléfico contra a China e o povo chinês. Tal atitude flagrante anti-China não condiz com o seu estatuto como deputado federal, nem a sua qualidade como uma figura pública especial”, rebateu o diplomata.
O imbróglio continuou durante a semana com notas e tuitadas de ambos os jogadores. Parece, aliás, que o Corona virou uma partida de futebol, um maracanzo em que as torcidas organizadas e raivosas esquecem-se do fair play numa espécie de catarse que se purga em “tiro, porrada e bomba”.
É isto que a Covid-19 virou, uma coadjuvante tímida, algo menor entre a disputa encenada por governistas e opositores presentes nas redes sociais. A agenda político-partidária sobrepujou a sanitária e desviou o foco da crise de saúde, que pode resultar em um cenário apocalíptico, sem exagero da expressão, já que os números de Corona só crescem.
Maniqueísmo
Além de reduzir o protagonismo do Coronavírus, os embates nas redes sociais são pouco produtivos, já que são maniqueístas por excelência. O bom contra o mau, o bem contra o mal, a direita contra a esquerda, um dualismo sem fim.
O tom é tão minimalista e beligerante que qualquer tentativa de debate é obliterada pelo ódio que derrama dos dedos dos interlocutores, se é que se pode usar esse termo. Creio, talvez, que Pierre Lévy não seria tão otimista se escrevesse sobre a Internet na sua era contemporânea.
Esse maniqueísmo, no entanto, não é novo, ele se adaptou aos meios e mediações pós-modernos. Maquiavel, no Príncipe, publicado no século 16, já aconselhava o soberano: “(…) é muito mais seguro ser temido do que amado. Porque, dos homens em geral, se pode dizer o seguinte: que são ingratos, volúveis, fingidos e dissimulados”.
Dos soberanos para o povo, o conselho de Maquiavel fez escola. Embarque no DeLorean e volte a 2013. No Brasil, o caos foi implantado pelo aumento de passagens do transporte público. Manifestações exasperadas pelas ruas, dramatização midiática, espetacularização política, tudo orquestrado a partir das redes sociais.
Como um “Big Brother”, vigiamos e punimos atores e personagens daquela crise. No final, o enredo foi coroado com o impedimento da presidente Dilma Rousseff (PT). Ou seria um golpe, como narrado no documentário “Democracia em Vertigem”, da cineasta Petra Costa? Como mineiro, deixo a resposta por sua conta.
A verdade é que o país perdeu muito com a polarização, só não perdeu mais porque não tinha uma pandemia prestes a explodir. Creio nos direitos inalienáveis de Liberdade de Expressão e de Pensamento, desde que praticados com responsabilidade e sem o despreparo expresso por líderes do governo e por uma opinião pública manipulável e manipulada.
Se considerar os discursos alienantes e maniqueístas da rede, a contragosto, vejo-me obrigado a concordar com o escritor italiano Umberto Eco. “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis (…) agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.
É com restrições que concordo com Eco. Isso porque acredito que todos têm direito a se expressar e as redes trouxeram essa importante contribuição social, ao tornarem o discurso horizontal. Mas, o que me intriga é o fato de agendas tão relevantes, como a da Covid-19, serem aparelhadas para fins que não justificam os meios.
Enquanto isso, é com melancolia que vejo a gestão da crise e suas mediações na Internet. Parece-me que estamos na peça “Esperando Godot”, do dramaturgo irlandês Samuel Beckett: apenas duas personagens, falas sem sentido, uma estrada deserta e esperando Godot, possível trocadilho em inglês para God, Deus. Mas fica a dúvida, será a intervenção divina apocalíptica ou afortunada?
*É jornalista, mestre em Letras e professor do curso de redação SOU1000.
Que sensatez!