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COLUNA PATRIMÔNIO VIVO: CIDADE VIVA OU CIDADE-MERCADORIA?

Foto: Ronaldo Cardoso (Vu)

Tulio de Oliveira Tortoriello *

Um dos problemas que podem surgir na atualidade, em cidades antigas e consideradas históricas como São João del-Rei, é a transformação do patrimônio e da memória tão somente em instrumento político e econômico, gerador de lucros. É como se a cidade outorgasse ao passado a responsabilidade sobre seu progresso e seu status futuro. Fernanda Sánchez, professora e arquiteta, no artigo Cultura e renovação urbana: a cidade-mercadoria no espaço global, alerta para o uso do espaço urbano como mercadoria para “vender” a cidade, dentro da lógica capitalista e globalizante dos dias de hoje.

Muitas cidades, no Brasil e no mundo, que foram importantes num passado mais distante, passaram por esse processo. Essas localidades experimentaram um declínio econômico, social e cultural e muitos de seus habitantes deixaram o lugar em busca de novas oportunidades. Mas, passados muitos anos, elas foram redescobertas como um destino turístico promissor, justamente por terem preservado, principalmente em razão do declínio e do abandono, seu patrimônio histórico e artístico. 

Uma nova população imigrante, geralmente com considerável poder aquisitivo, começa a se apoderar de imóveis do núcleo histórico, e a transformar as moradias em lojas, hotéis e restaurantes sofisticados, o que acaba obrigando a população remanescente a se instalar no entorno desse perímetro “histórico”. 

Algumas das estratégias para a concretização desses “projetos de revitalização”, segundo Sánchez, é a criação de centros culturais, museus, promoção de eventos e preservação de monumentos considerados emblemáticos. 

A comunidade local fica praticamente alheia, não participa do processo de revitalização de áreas degradadas e também não usufrui socialmente dos resultados dos projetos, formatados especificamente para o desenvolvimento do turismo local, aqui visto como atividade capitalista geradora de renda. Especialistas ligados à produção cultural também criticam um conceito limitador de bem cultural no Brasil, restringindo-se aos bens materiais e imateriais, deixando de fora as manifestações populares.

Ao descrever essas transformações e movimentos urbanos nessas cidades, é possível perceber modificações significativas nas características do lugar e na sua população e consequentemente em sua memória e identidade. Muitos criticam essa nova concepção urbana e denunciam que os lugares se tornaram “cidades cenográficas”, destinadas apenas aos turistas, ou seja, passaram a ser apenas cidades-mercadoria, enquanto suas populações participam muito pouco da construção desses novos pólos turísticos. 

É evidente que há benefícios para a população local, pois muitos empregos na área de serviços são criados, há expansão imobiliária e de infraestrutura fora dos limites da área tombada e muitos dos imóveis sob proteção são recuperados, em razão dos investimentos feitos com recursos vindos de fora. Mas é inegável que há uma questionável transformação na vida social e cultural da população local.

Por tudo que foi dito até aqui, queremos mostrar que os benefícios econômicos da cidade-mercadoria não podem ser lidos da mesma forma nos âmbitos cultural e social. A cidade-espetáculo pode ser atrativa para a atividade turística e para uma parcela das pessoas que vivem no lugar, mas a transformação da memória social e cultural da cidade, ocasionada pelo fenômeno, pode não ser plenamente vantajosa para uma parte expressiva da população e merece, por isso, discussão e questionamento.

São João del-Rei, que teve um desenvolvimento perene ao longo de sua história, por ser uma cidade polo em sua região, por outro lado, ainda não viu seu potencial turístico crescer substancialmente, mas anseia em fazê-lo. Seu núcleo histórico continua sendo predominantemente residencial e as manifestações culturais herdadas dos antepassados ainda continuam presentes na vida social de seu povo de maneira ainda vigorosa no presente. 

Alguns exemplos são as festas religiosas que ocorrem na cidade durante todo o ano em quase todos os seus templos e que impedem que os mesmos sejam usados apenas como atrações de cunho histórico ou cultural. Essas expressões coletivas locais podem ser instrumentos para inibir a implementação de uma política cultural voltada exclusivamente para o desenvolvimento turístico destinado ao público externo.

Foto: Ronaldo Cardoso (Vu)

Desafio para a cidade

Eis aqui um desafio para nossa cidade: desenvolver o turismo e preservar sua essência social e cultural. Vislumbramos, após essas reflexões, a importância das manifestações culturais populares e da memória social e cultural coletivas na preservação do patrimônio cultural material e imaterial. 

Nesse contexto, a participação dos sujeitos locais pode impedir que uma cidade se torne apenas um produto turístico para consumo externo, ao proporcionar a integração das camadas populares no processo. São as expressões oriundas da comunidade que permitem aferir o potencial, a vocação e os valores de um povo. 

Essa contribuição popular também pode evitar que a cidade se torne a protagonista e seu povo apenas coadjuvante no roteiro da preservação. É importante também aqui esclarecer que não temos uma posição contrária ao desenvolvimento do turismo como fonte de renda, em São João del-Rei. 

Ao contrário, consideramos importante uma ação conjunta da administração pública, dos órgãos preservacionistas e de representantes da comunidade, para que esse processo seja mais eficaz para todas as partes e para que haja não só um desenvolvimento econômico para a cidade, mas também ganhos sociais e culturais substanciais para a sua população. Seria decepcionante ver o povo são-joanense vivendo apenas como figurante dentro de seus domínios.

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Letras (linha de pesquisa Literatura e Memória Cultural) pela Universidade Federal de São João del-Rei, com dissertação defendida sobre “Usos sociais do patrimônio histórico e cultural de São João del-Rei”, ex-membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de São João del-Rei, de 2003 a 2009.

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