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CRÔNICA: COM VIVA EMOÇÃO

lustração: Nani, para o livro Os subterrâneos do futebol, de João Saldanha

Edu Tollendal *

Para Vera Follain

Creio ter ouvido mil vezes nosso pai contar a história do jogo entre Olympic e Botafogo – que deve ter acontecido no início de 58, se não lhe falha a memória – enquanto tomava café, à cabeceira, após o ajantarado de domingo. Os dois times haviam sido campeões de seus respectivos campeonatos e o amistoso serviria para comemorar as brilhantes conquistas.

Não me lembro do campeonato juiz-forano de 57; lembro-me de ter visto minha mãe cortando e costurando enormes calções azuis, para serem usados por gigantes. Naquele tempo, a indústria da moda esportiva não estava nem engatinhando.

Alexandre Passos, que era um menino mais velho do que eu, lembra-se de ter ido ao jogo; e ter visto nosso pai chegando ao estádio, com Heleno, num Chevrolet conversível. Eu não me lembro de que meu pai tenha tido um Chevrolet conversível.

Também não me lembro do campeonato carioca de 57, a não ser por umas fotografias n’ O Jornal do Rio de Janeiro, que ficou longo tempo pegando poeira sobre a mesa da sala; e de ter ido com nosso pai, uma tarde, até a casa de saúde onde ele trabalhava, ouvindo, no rádio do carro, um jogo duríssimo contra o Olaria, na rua Bariri.

Era um fim de tarde gelado, sombrio e úmido – como era comum haver em Barbacena. Atrás de uma porta fechada, ouvi uma voz humana que imitava um motor em funcionamento, e que ia acelerando, acelerando, até extinguir-se com a elevação da voz.

Numa sala contígua, meu pai separava os remédios que os enfermeiros dariam, à noite, aos pacientes. Uma única lâmpada de luz amarela iluminava a sala, pendurada na ponta de um fio. A noite caía, a tristeza adensava-se no ar. Perguntei a meu pai:

– Meu pai, o que é isto?

Lembro-me de ele ter respondido:

– É o Heleno andando de motocicleta, coitado!

Estávamos nesta aflição, quando ouvimos um enfermeiro gritar:

– Gol de Quarentinha!

A narrativa que nosso pai ia tirando da cachola, cada uma das mil vezes em que nos contou esta história, tinha, sempre, quatro momentos de aguda inflexão na voz pausada, jocosa e firme, com que narrava, nos quais se detinha com viva emoção: a visita a Heleno, os dribles de Garrincha e os pênaltis de Nilton Santos e o gol de Valdermazinho Iuiuca, nosso parente.

Assim que chegou a Barbacena e desceu do trem, a comitiva alvinegra foi visitar Heleno de Freitas, no sábado pela manhã. Como se sabe, o craque galã padecia de sífilis cerebral – doença incurável, diagnosticada por meu pai; mas não estava pobre e abandonado, nem morreu à míngua, como divulgavam certos jornalistas amantes do sensacionalismo, maledicentes, infelizes e obtusos, da nossa crônica esportiva.

Informado do que se passava, Heleno passou em todos uma descompostura em regra, a que não faltaram belos palavrões. Que eram todos uns cretinos, que não jogavam nada, que o glorioso Botafogo, a que dedicara a vida, não era lugar para covardes! Menos, ainda, pernas-de-pau!

Apenas Didi indignou-se com o comportamento de Heleno, ofendendo os colegas de profissão e a memória do clube, até ser esclarecido de que ele, outrora lúcido, não controlava mais os próprios nervos. Há quem refira choros e lágrimas, neste único encontro entre Heleno e Garrincha, de que não me lembra nosso pai ter feito referência.

Desta visita frustrada, a comitiva seguiu para um almoço de confraternização, animado pelo harmonioso Conjunto Real, que executou os mais belos tangos, boleros, maxixes, sambas e xaxados do inigualável repertório sul-americano; ocasião em que Garrincha encantou a todos, com sua simpatia, dançando alternadamente com as mais distintas senhoritas da nossa sociedade – o que muito contribuiu para o clima amistoso do jogo que aconteceria no domingo.

Heleno deve ter sido muito bem preparado para ir ao estádio, porque, ao contrário do dia anterior, portou-se como um cavalheiro: cumprimentou a todos os seus incontáveis fãs e aplaudiu as jogadas sensacionais do espetáculo que os craques alvinegros ofereciam à plateia: a matada no peito, a folha seca, o lançamento em profundidade, a tabela rápida, o gol de letra e a cavadinha fatal (que arrebenta os corações), em que eram pródigos; só não podia esconder a tristeza de saber-se precocemente no fim da vida; ter a difusa consciência de que este tarde de glória, festejado na humilde arquibancada de um campo, no interior de Minas, não era o destino que sua grandeza merecia.

 O jogo transcorreu na mais absoluta cordialidade, a ponto de o apitador Badu ter passado despercebido, não fossem os dois pênaltis. Desde o início, Garrincha tomou conta do espetáculo. Investindo sempre pela direita, dava dribles impossíveis em seu pobre marcador. Garrincha era a alegria do povo. Pendurado no alambrado, feliz como nunca, nosso pai gritou para o lateral:

– Marca o homem, Coró!

– De que jeito, dotô? Ele ataia… – respondeu o infeliz Coró.

Era, este, o ponto máximo da narrativa, a pedir gargalhadas e mais um café. Café e tosse e mais gargalhadas. Como se fosse um filme de Chaplin. À cabeceira da mesa, nosso pai estava feliz.

Mas o Olympic não era um time qualquer. Tinha o goleiro Danton, inexpugnável; tinha o artilheiro Tomé, com uma bomba na canhota, que nosso pai tivera a imensa felicidade de descobrir entre seus alunos da Escola de Aeronáutica; tinha um negro alto e forte como um deus grego, de nome Tetraldo, que jogava o fino; e um ponta-direita arisco como Garrincha, conhecido por Gute. Todos os times do Brasil tinham um ponta-direita arisco como Garrincha.

Havia sido campeão juiz-forano num jogo épico, em que rasgaram a orelha do inexpugnável goleiro Danton; e que teve momentos de trágica alegria, conforme o ponto de vista, que só o futebol proporciona: pois, quando o Tupi estava para fazer o quarto gol, o vigoroso zagueiro Borracha salva a pátria, dando um bicudo na pelota, que vai parar, mansamente, como um cordeiro de Deus, nos pés de Iuiuca, que avança, avança … e marca. Era o gol do título.

Veio o jogo contra o Botafogo. Na metade do segundo tempo, os cariocas já venciam por 5 a 0, quando Lucas, um lateral negro, atarracado e soturno, que jamais cruzava a intermediária adversária, levantou a bola na área pela milésima vez em sua carreira. Fingindo que ia cabecear – nosso pai nunca esquece este detalhe teatral – Nilton Santos põe a mão na bola.

– Pênalti! – o estádio grita em uníssono.

O vigoroso zagueiro Borracha se prepara para a cobrança. Corre para a bola feito um touro e isola o balão de couro, sobre o alambrado, na mata que fica atrás do gol que dá para o vale da Sericicultura.

Enquanto a torcida se diverte, Borracha – humilde bedel do Ginásio Mineiro – permanece imóvel, na meia-lua. Está arrasado! Era o gol de honra. Era a glória que se lhe escapava por entre os dedos.

Segue o jogo e Lucas, pela milésima-primeira vez em sua carreira, levanta a bola na área adversária. Nilton Santos finge que vai cabecear, etc, etc. Pênalti! Borracha se apresenta para a cobrança. Está, imóvel, na meia-lua, quando vê passar correndo o Iuiuca, que se aproxima da bola e, com grande talento e delicadeza, desloca o goleiro e marca.

Era a glória que se lhe escapava por entre os dedos, pela segunda vez. O estádio explode de alegria. E o humilde bedel lamenta o dia em que resolveu jogar futebol, em vez de contentar-se com a obscuridade do seu humilde trabalho, em que, cochilando numa sala vazia, fazia palavras-cruzadas. O estádio cai na gargalhada.

Estava Borracha neste transe, quando ouve nosso pai gritar, lá do alambrado:

– Bate o pênalti, homem! Que está todo o mundo esperando…

Borracha abre os olhos e vê a bola aninhada na marca. Uma só respiração percorre o estádio, num silêncio ensurdecedor – diria um jornalista de talento, como Nelson Rodrigues. Borracha, então, corre para a bola feito um touro e lhe desfere potente petardo, que vai estufar as redes de Adalberto. Outros, dizem, de Amauri, não se sabe ao certo. Era o gol de honra!

A alegria é geral. A torcida explode de contentamento. Em campo, os jogadores se abraçam, irmanados. E os craques alvinegros, igualmente solidários, aplaudem o grande feito. Este é o Botafogo profundo: altivo na vitória, generoso com os vencidos.

 Na cidade, ao longe, espocaram foguetes. Alguém mandou o sacristão bater o sino da Matriz. Até os vilenses, despeitados, se perguntam: o que terá havido de tão extraordinário, lá pelas bandas da sagrada colina de Santa Teresa?

Agradeço aos céus ter-me dado a pena, o talento e a pachorra, para poder registrar, para os pósteros, esta narrativa que mil vezes ouvi da boca de nosso próprio pai, sendo eu um reles menino afogueado.

* É barbacenense e professor-doutor de literatura da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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