Início Cultura GUIA CINÉFILO: SPIKE LEE, O CINEMA DO BROOKLYN

GUIA CINÉFILO: SPIKE LEE, O CINEMA DO BROOKLYN

Lucas Maranhão *

Muitos filmes , já tentaram, de algum modo, representar a vida em Nova York. De King Kong (1933) a O Lobo de Wall Street (2013), são diversas as visões sobre a cidade: existe a Nova York decadente e suja dos anos 70 em Taxi Driver (1976) ou a bela e charmosa de Annie Hall (1977); a cidade ancestral de Gangues de Nova York (1999) ou a cosmopolita de Psicopata Americano (2000). Talvez essa seja a cidade mais representada na sétima arte. Variados também são os filmes que tentaram mostrar a experiência da população negra na cidade, como Shaft (1971), mas, nessa categoria, ninguém criou obras com tanta propriedade quanto o diretor e roteirista Spike Lee.

Sem dúvidas, isso se deve ao fato de Spike ter crescido no Brooklyn e se formado como cineasta na New York University, onde hoje é professor. Foram décadas acompanhando o cotidiano da cidade, seu bairro e seu povo para um dia transformar todo esse conhecimento em filmes. Além disso, sempre foi comum em suas produções a quebra de paradigmas, expondo o racismo presente na indústria, por adotar não só um elenco quase totalmente protagonizado por pessoas negras, mas também uma equipe técnica.

Seu sucesso mais recente foi o lançamento de Infiltrados na Klan (2018), pelo qual ganhou o inédito Oscar de Melhor Roteiro. Este é um filme que tem a cara do Spike Lee, mas, em uma indústria cruel, ele possui uma carreira irregular. Em diversos momentos foi levado a dirigir filmes que não faziam parte do seu estilo próprio – a terrível adaptação americana de Old Boy (2013) é o maior exemplo disso. Porém, a primeira fase de sua carreira é espetacular. De Ela Quer Tudo (1986) até Crooklyn (1994) ele desenvolve sete filmes muito marcantes, incluindo seus dois melhores: Faça a Coisa Certa (1989) e Malcolm X (1992). Vamos falar sobre esses filmes.

ELA QUER TUDO: Primeiros anos

Ela Quer Tudo (Lee, 1986)

Seu primeiro longa-metragem foi independente, feito com um orçamento pequeno – inclusive, vale dizer que sua avó foi responsável por bancar boa parte da produção. Ela Quer Tudo (1986) é centrado na personagem Nola Darling (Tracy Camilla Johns), uma jovem que se relaciona simultaneamente com três homens. Nola é uma mulher negra e sexualmente ativa que precisa enfrentar os preconceitos não só da sociedade, mas de seus amantes. E ela parece simplesmente não se importar em ser quem é. No lugar de adjetivos preconceituosos, ela se vê como independente e livre. Tocante e ousado, o filme foi sucesso em festivais.

Spike já demonstrava sua característica mais marcante como contador de estórias audiovisuais: a quebra da quarta parede, com personagens falando diretamente para a câmera. E também se colocava como ator, no papel de um dos amantes de Nola. Tudo isso seria recorrente em sua carreira, incluindo seu próximo filme: Revolução Estudantil (1988).

Em seu segundo filme, ele desenvolve um roteiro sobre o enfrentamento entre fraternidades em uma universidade do Alabama, exclusiva para negros. Apesar de apresentar interessantes debates raciais, o filme representa sua produção mais inconsistente deste período, justamente por parecer, em um primeiro momento, realizar uma crítica racial, quando, na verdade, acaba se moldando ao padrão por ele tão questionado.

FAÇA A COISA CERTA: A febre Spike Lee

Faça a Coisa Certa (Lee, 1989)

Depois do tropeço em seu segundo filme, Spike retornaria com sua “Grande Obra”. Faça a Coisa Certa (1989) é um filme que contém a alma da era de ouro do Hip-Hop. Dos figurinos afrocentristas da genial Ruth Carter, passando pelos enquadramentos tortos que parecem lembrar as danças de B-boys, até os personagens. 

Buggin Out, por exemplo, interpretado pelo incrível Giancarlo Esposito, é o melhor personagem já criado por Spike Lee. Ele, em si, representa muitos rappers dos anos 80: questionador, franco e orgulhoso de suas próprias origens. Também é responsável por conduzir a narrativa ao tentar iniciar um boicote à pizzaria do ítalo-americano Sal (Danny Aiello).

Adotando uma estrutura conhecida como “a day in the life”, o roteiro possui um recorte bem definido – se passa durante um único dia de muito calor em um quarteirão de Bed-Stuy, região do Brooklyn em que Spike cresceu. Mesmo assim, consegue apresentar os diversos conflitos raciais presentes em uma cidade tão diversificada. Em uma das cenas mais geniais, Spike corta entre diversos personagens que usam os estereótipos mais racistas uns contra os outros: o negro xinga o italiano, que xinga o negro de volta; o latino xinga o policial branco, que xinga o coreano, que xinga o judeu.

A tarefa de prosseguir depois de um dos filmes mais impactantes do cinema americano contemporâneo não seria fácil, mas, um ano depois, Spike lança Mais e Melhores Blues (1990). Primeira colaboração do cineasta com Denzel Washington e Wesley Snipes, o filme narra a vida de um trompetista talentoso e egocêntrico, que entra em conflito com suas próprias relações e seu ascendente quinteto de jazz. Um filme eficiente em abordar um tema importante: os problemas enfrentados por artistas negros em sua escalada social pelo sucesso. Wesley Snipes retornaria em seu próximo filme: Jungle Fever (1991), que aborda tema similar. Spike explora a situação de um homem negro que consegue sucesso profissional e ascensão social e então, trai sua esposa com uma mulher branca. As representações raciais no filme mostram porque Spike Lee é um mestre em trazer essas tensões para a tela. O filme lida com situações como a solidão da mulher negra e o homem negro que usa uma parceira branca como símbolo de ascensão social. Através do personagem de Samuel L. Jackson, ainda encontra espaço para discutir a dependência do crack.

MALCOLM X: Spike volta no tempo

Malcolm X (Lee, 1992)

Então, Spike entra em seu trabalho mais ambicioso: representar a vida do ícone afro americano na luta contra o racismo, e uma de suas principais fontes de inspiração, Malcolm X. Em cada cena, é visível a importância desse filme para o cineasta. Não à toa, ele aborda a história com a maior fidelidade possível e não economiza película, entregando uma obra com mais de 3 horas de duração.

Diferente de Faça a Coisa Certa, Malcolm X (1992) possui um recorte bem maior. Percorre décadas, especialmente marcadas pela cenografia e figurino (novamente com a ajuda de Ruth Carter). Narra a vida de Malcolm (Denzel Washington) desde sua infância, com o assassinato de seu pai por membros da Ku Klux Klan, passando por sua fase na criminalidade durante os anos 40, a conversão ao islamismo na prisão e a ascensão e declínio como porta voz da Nação do Islã. O trabalho de condensar tamanho enredo é efetivo, vide a belíssima montagem que intercala momento em que Malcolm assiste um discurso de Martin Luther King pela televisão com outro de seu próprio discurso. Em minutos, conseguimos sentir tudo que envolvia os dois líderes: as diferenças no combate ao racismo, mas, ainda assim, a admiração e o respeito.

A atuação de Denzel como protagonista também é primorosa. Sendo ele ponto central do filme, está presente em quase todas as cenas e consegue mostrar a evolução de Malcolm em um simples olhar e na imposição da voz. A frequente colaboração entre o diretor e o ator encontra seu ápice, dando a Denzel seu mais marcante personagem.

Depois do trabalho desgastante que envolveu Malcolm X, não é de surpreender que Spike prosseguisse com um filme de menores proporções. Crooklyn (1994) é seu filme mais pessoal, em que volta para sua infância nos anos 70. Co-escrito em parceria com sua irmã, Joie Lee, o filme abre espaço para cinco pequenos irmãos, filhos de uma professora e um falido jazzista. O protagonismo é das crianças, principalmente a menina Troy (Zelda Harris), que serve como alter-ego de Joie. Uma bela obra que é tocante em sua simplicidade, já que aborda temas complicados, como a morte, pela perspectiva infantil.É claro que Spike Lee voltaria a fazer bons e excelentes filmes – o documentário Quatro Meninas (1997) e a comédia A Hora do Show (2000), além do já citado Infiltrado na Klan são exemplos -, mas depois de Crooklyn sua carreira perde consistência. Certamente, existem cineastas que sonham a vida inteira em realizar filmes como os sete que discutimos nesse texto. Ele os realizou ao longo de apenas nove anos. Spike é um dos grandes cineastas, e vale a pena ser estudado – seu cinema representa uma voz poderosa e sensata, que nem sempre recebeu a atenção necessária em Hollywood.

* É jornalista, designer e apaixonado por cinema.

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