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PATRIMÔNIO SÃO-JOANENSE: TOMBAMENTO E DESTOMBAMENTO

Foto: César Reis

Tulio de Oliveira Tortoriello *

São João del-Rei foi uma das primeiras cidades no Brasil a ser tombada pelo primeiro órgão de preservação do patrimônio cultural criado no país, em âmbito nacional, o Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), hoje IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e artístico Nacional). Mas esse processo não ocorreu de forma tranquila e pacífica. Houve muitas idas e vindas nas atitudes e decisões relativas ao assunto, na primeira década em que a cidade passou a ficar sob proteção federal.

São João del-Rei teve a atenção do Sphan já em 4 de março de 1938, quando houve o tombamento do “conjunto arquitetônico e urbanístico de São João del-Rei”. Esta denominação para o patrimônio são-joanense consta do Livro do Tombo das Belas-Artes do Sphan e nesse conjunto estavam as igrejas dos séculos XVIII e XIX, as construções em estilo colonial e também os prédios das regiões centrais onde havia o predomínio de construções mais novas, em estilo eclético. O patrimônio são-joanense era considerado de “primeira grandeza” dentro do conjunto do patrimônio histórico e artístico brasileiro.

Sebastião de Oliveira Cintra elenca, em suas Efemérides de São João del-Rei, vários acontecimentos que impulsionaram o desenvolvimento da cidade a partir do final do século XIX até a segunda década do século XX, como a abertura de vários jornais e agências bancárias e a chegada da luz elétrica. Além disso, em 1881 foi inaugurada a EFOM, Estrada de Ferro Oeste de Minas, que foi um facilitador do progresso e da comunicação da cidade com a província e o país. Era o progresso chegando a São João del-Rei naquele período. Assim, nos anos vinte, trinta e quarenta, na cidade, a tônica era a modernização.

A partir desse ano e rompendo os anos quarenta, várias matérias, crônicas, cartas e editoriais de jornais tratavam, de maneira recorrente, do assunto “progresso”. Os jornais não negavam e nem deixavam de exaltar o passado e a história da cidade, mas as referências a esse passado glorioso e digno de ser lembrado se limitavam apenas às suas igrejas dos séculos XVIII e XIX, às suas antigas pontes de pedra, a da Cadeia e a do Rosário, e a um ou outro edifício considerado de relevo. O que importava, em verdade, era o progresso, o desenvolvimento e o futuro.

A medida de tombar o conjunto arquitetônico de São João del-Rei não causou um impacto maior na vida cotidiana da cidade durante os primeiros cinco anos de sua efetivação. Até 1942, os órgãos de imprensa chegaram a defender a presença de técnicos do Sphan que, certa vez, estavam na cidade para fazer um molde em gesso do pórtico da igreja de São Francisco de Assis, para ser levado e exposto em museu do Rio de Janeiro. Contudo, a partir de 1943, as críticas ao então Sphan começaram a surgir na imprensa local. Em 17 de agosto daquele ano, o Diário do Comércio publicou um editorial intitulado São João del-Rei não quer fixar-se no passado, com duras críticas àquele órgão federal, mais notadamente ao tombamento de todo o conjunto arquitetônico da cidade.

Após o editorial do Diário do Comércio contra o Sphan, outros episódios envolvendo o patrimônio da cidade passaram a servir de mote para a publicação de artigos contra aquele órgão federal. Mas o episódio que desencadeou, a partir de 1946, uma grande quantidade de matérias de jornais sobre a atuação do Sphan na cidade foi o da disputa entre manutenção e demolição do prédio construído em meados do século XIX pelo comendador João Antônio da Silva Mourão, na atual praça Severiano de Resende, conhecida também como Largo Tamandaré, onde hoje funciona o Museu Regional de São João del-Rei. Ainda naquele ano, ao dar um parecer sobre o caso, Afonso Arinos de Melo Franco, historiador, jurista e membro do conselho consultivo do Sphan à época, acabou por decretar de modo definitivo a permanência do sobrado do comendador Mourão no largo Tamandaré da progressista cidade mineira de São João del-Rei.

O Diário do Comércio chegou a criar a coluna “São João del-Rei não quer fixar-se no passado” para tratar dos assuntos relacionados ao sobrado do Largo Tamandaré, mas que também desdobravam-se em outras questões, como a atuação do Sphan em São João del-Rei e o tombamento total do conjunto arquitetônico com suas consequências para o desenvolvimento da cidade. Em razão de tantos protestos nos periódicos, pedidos da municipalidade ou como “recompensa” pela manutenção do sobrado do Largo Tamandaré, o fato é que em 1947 o Sphan procedeu a uma revisão do tombamento do conjunto arquitetônico e urbanístico de São João del-Rei. Para tanto, enviou à cidade alguns técnicos do órgão, responsáveis por delimitar a área a ser preservada.

O estilo colonial, representado pela Igreja do Carmo, e várias construções em estilo eclético. Foto: César Reis.

Na revisão do tombamento foram privilegiadas as áreas que concentravam as igrejas e as construções e monumentos em estilo colonial e “tradicional”. Assim, a maior parte das construções em estilo eclético, estilo que surgiu na Europa, no final do século XIX, e que estava presente nas construções são-joanenses mais novas, ficaram de fora na revisão do tombamento. O Sphan e sua direção estavam interessados em proteger o patrimônio que representasse as “origens do Brasil” e o que fosse “genuinamente nacional”, como o patrimônio histórico e artístico das cidades brasileiras do século XVIII, por exemplo. O estilo eclético era associado a um “mau gosto” burguês, importado de outra cultura e não representava nossa nacionalidade. Assim, no “novo tombamento” são-joanense de 1947 muitos edifícios ecléticos ficaram desprotegidos, puderam ser demolidos e a cidade perdeu muitos exemplares desse estilo. Mas hoje, após mais de cem anos, o eclético adquiriu ancianidade, ou seja, se tornou antigo e importante, e os exemplares que restaram passaram a merecer a atenção dos órgãos de preservação do patrimônio.

A revisão do tombamento, efetuada para agradar o poder público municipal e as elites locais, revela a conciliação dos interesses desses dois grupos, sem participação de setores representativos das camadas populares, e também reforça, como já observamos anteriormente, a escolha pela produção artística e arquitetônica do período colonial, ao excluir as construções de estilo eclético do acervo sob tutela do Sphan. As novas construções que foram tomando lugar das ecléticas ao longo da segunda metade do século XX no centro comercial são-joanense constituem-se, em sua maioria, de sobrados com um cômodo para fins comerciais no andar térreo e apartamentos com destinação residencial nos andares superiores, estrutura semelhante à dos edifícios históricos anteriores, mas com estilo que “primava pela falta de compromisso com a cidade e seus habitantes”, segundo o historiador Roberto Maldos. Essa característica é facilmente perceptível ainda nos dias de hoje, o que leva por terra os argumentos dos jornais e dos setores ligados ao comércio, no período de 1939 a 1946, de que “a grande quantidade, porém, das casas antigas das nossas principais ruas vem entravando esse desenvolvimento e fazendo, pelo menos no centro de maior movimento da cidade, cada vez mais grave a falta de cômodos” (Diário do Comércio, 07 jul. 1939).

Podemos perceber, após esses relatos sobre os acontecimentos referentes ao tombamento da cidade, em sua primeira década, que o argumento de que o patrimônio da cidade impedia seu progresso foi uma grande falácia, construída por parte da imprensa, da elite e da municipalidade da época, pois as estruturas dos prédios não foram alteradas para propiciar o tão almejado “progresso”. Serviram tão somente para proporcionar um pouco mais de conforto aos proprietários dos imóveis, que passaram a usar e habitar construções mais novas. E o preço disso foi a destruição de grande parte do patrimônio histórico e artístico da região central, notadamente as construções em estilo eclético, consideradas, nos dias atuais, um patrimônio importante e valioso.  

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Letras (linha de pesquisa Literatura e Memória Cultural) pela Universidade Federal de São João del-Rei, com dissertação defendida sobre “Usos sociais do patrimônio histórico e cultural de São João del-Rei”, ex-membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de São João del-Rei, de 2003 a 2009.

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